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Misericórdia: Do Antigo Testamento a Cristo, passando pelo islão

Imagem Jesus cura cego (det.) | Duccio di Buoninsegna | 1308-11 | National Gallery, Londres, Inglaterra

Misericórdia: Do Antigo Testamento a Cristo, passando pelo islão

«Deus perdoa tanta coisa por uma obra de misericórdia!»: assim dizia uma personagem do romance "Os noivos", de Alessandro Manzoni.

O horizonte humano e espiritual da virtude fundamental da misericórdia alarga-se às três grandes religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islão. O itinerário de aprofundamento num tema tão vasto poderia ser recapitulado através de um percurso particular, o dos termos com que a misericórdia é expressa nos livros sagrados dessas religiões.

Cada realidade, com efeito, tem no vocabulário adotado a sua identidade mais específica: assim, é evidente que para o italiano [também o português] o órgão "físico" desta virtude é o coração (miseri-cordia), que conhece os frémitos da compaixão e da partilha face ao pobre.

Na linguagem bíblica, contudo, assistimos a um fenómeno curioso porque, quer no hebraico quer no grego, as duas línguas capitais da Sagrada Escritura, a sede da misericórdia é o útero materno ou a capacidade geradora paterna.

Em hebraico é o substantivo "rehem", no plural "rahamîm", que designa primariamente o ventre materno e que é transformado numa metáfora emocional aplicada em primeiro lugar a Deus, que se encontra, assim, femininamente conotado. Iluminador pela imagem e pelo conceito é um passo do livro do profeta Isaias: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria» (49,15).

Explícito é o Salmo 103, que reenvia, por seu lado, para a geração paterna: «Como um pai se compadece dos filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem» (v. 13), isto é, pelos seus fiéis.

Não elencaremos os passos bíblicos onde esta metáfora geracional é referida a Deus. Basta apenas citar um par de frases: «Por um curto momento Eu te abandonei, mas recolher-te-ei com imensa misericórdia (54,7); «piedade de mim no teu amor, na tua grande misericórdia, apaga o meu pecado», e esta é a invocação inicial do célebre "Miserere" (Salmo 51).

É interessante notar neste momento que todas as suras (ou capítulos) do Corão (exceto a IX, talvez fruto de um fracionamento) se abrem precisamente com dois adjetivos árabes modulados pela mesma raiz "rhm" do termo bíblico: «Em nome de Deus misericórdia e misericordioso» (bismiLlah al-rahman al-rahim).

É por isso paradoxal que o fundamentalismo muçulmano proceda precisamente em sentido oposto, ignorando o rosto autêntico do Deus do Corão, que, antes de ser justo, é compassivo e misericordioso. Um tema exaltado de modo muito intenso por uma importante tradição mística muçulmana conhecida como sufi, onde entra em cena repetidamente o Deus amoroso e o fiel enamorado.

É verdade que no livro sagrado do islão há páginas ásperas, e até violentas, como também acontece no Antigo Testamento. Eis aqui, portanto, a importância  de uma interpretação que procure colher a alma mais profunda para além das fórmulas contingentes. É a superação do literalismo fundamentalista porque, como escrevia S. Paulo, «a letra mata, é o Espírito que dá vida» (2 Coríntios 3,6).

Ser misericordioso equivale, portanto, a ser tomado "até às entranhas", com um amor total, espontâneo, absoluto, até realizar aquele gesto extremo de doação, delineado por Jesus nos discursos da última noite da sua vida terrena: «Ninguém tem um amor maior do que este: dar a vida pelos próprios amigos» (João 15,13).

Passamos, assim, ao grego do Novo Testamento, onde - como sucede também para a Escritura hebraica - são adotados vários sinónimos, a partir do verbo "eleéô", presente na invocação litúrgica "Kyrie eleison", «Senhor, tem misericórdia!». Mas o mais sugestivo é o verbo "splanchnízomai", evocado 12 vezes, que remete para as "splánchna", as "entranhas" maternas da compaixão.

Jesus tem o coração apertado com esta ternura misericordiosa quando se cruza com os sofredores nos caminhos da sua terra. Assim lhe acontece aquando do funeral do rapaz da povoação galileia de Naim, filho único de uma viúva (Lucas 7,13), ou quando vê diante de si a multidão esfomeada que o seguiu e escutou (Marcos 6,34); e, noutro caso, confessa explicitamente: «Tenho compaixão [splanchnízomai] por esta multidão que me segue há três dias sem comer» (Marcos 8,3). A mesma experiência repete-se perante os dois cegos de Jericó (Mateus 20,34) ou com um leproso (Marcos 1,41), e assim por diante.

É por isto que, justamente, o grande escritor Dostoievski definia no seu romance "O idiota" a misericórdia como «a mais importante e talvez a única lei de vida da humanidade inteira».

 

Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In "Famiglia Cristiana"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 08.12.2015

 

 
Imagem Jesus cura cego (det.) | Duccio di Buoninsegna | 1308-11 | National Gallery, Londres, Inglaterra
Ser misericordioso equivale, portanto, a ser tomado "até às entranhas", com um amor total, espontâneo, absoluto, até realizar aquele gesto extremo de doação, delineado por Jesus nos discursos da última noite da sua vida terrena: «Ninguém tem um amor maior do que este: dar a vida pelos próprios amigos»
Jesus tem o coração apertado com esta ternura misericordiosa quando se cruza com os sofredores nos caminhos da sua terra. Assim lhe acontece aquando do funeral do rapaz da povoação galileia de Naim, filho único de uma viúva (Lucas 7,13), ou quando vê diante de si a multidão esfomeada que o seguiu e escutou
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