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Manuel Braga da Cruz recebeu Prémio Árvore da Vida e destacou papel dos católicos nas ciências sociais

Intervenção de Manuel Braga da Cruz no agradecimento ao Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes 2022
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 8.3.2023


Senhor D. João Lavrador, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura
Senhor Prof. Doutor José Carlos Seabra Pereira, Director do Secretariado Nacional de Pastoral da Cultura
Senhor Eng. Ilídio Pinho, Presidente da Fundação Ilídio Pinho
Senhor Prof. Doutor José Miguel Sardica

Agradeço à Comissão Episcopal da Cultura e ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura a honra da atribuição do Prémio de Cultura Arvore da Vida P. Manuel Antunes, e aos membros do júri a sua decisão que tanto me sensibilizou.

1. Atribuir um Prémio de Cultura a um cientista social tem um especial significado, que transcende a minha pessoa, pois revela a compreensão de que as ciências sociais são “ciências da cultura”, como as definiu há mais de um século Heinrich Rickert, ou até mesmo “ciências do espírito”, como as entendia Wilhelm Dilthey, seu contemporâneo. É o reconhecimento da dimensão cultural do social. Se é certo que o social não é redutível à cultura, pela importância de que a natureza se reveste na determinação dos comportamentos sociais, no entanto, não há sociedade sem cultura. Ela é o cimento coesivo de todas as realidades sociais. Perceber o que nos mantém unidos é uma indagação cultural, que procura o que nos identifica.

A cultura impregna toda a acção social, dá-lhe intenção e significado, como o recordou Max Weber. Os comportamentos sociais são culturalmente configurados e determinados. Daí que a cultura seja constitutiva da própria investigação social. Ao contrário do que pretendia o empirismo sociológico, os valores não devem, nem podem, ser elididos, porque estão a montante do agir social. Por isso a cultura passou, com Talcott Parsons, a constituir um sub-sistema da teoria geral da acção social. Toda a investigação sociológica é, pois, culturalmente relevante.



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2. A cultura de que se ocupam as ciências sociais não é, porém, somente a cultura das letras e das artes, mas também a cultura comportamental, feita de hábitos, crenças, costumes, tradições, normas, símbolos e valores. Cultura essa que, além da imaterialidade, abrange também a cultura material, feita de utensílios, artefactos, monumentos, e técnicas. Estas duas culturas interligam-se em mútua dependência, constituindo as duas faces de uma mesma cultura, não podendo ser estudadas uma sem a outra.

Se, de início, a cultura comportamental de que as ciências sociais se ocupavam era a das simples sociedades primitivas, com o tempo passaram também a tomar como objecto de estudo a cultura das complexas sociedades contemporâneas.

A cultura que as ciências sociais investigam, não é tão pouco apenas a cultura das elites, a que em tempos se chamou Alta Cultura, mas também a cultura popular, pois não há grupos sociais sem cultura própria. Essa cultura tornou-se hoje numa cultura de massas, estandardizada e padronizada. Deixou de significar artes e letras, para passar a traduzir, no dizer de Daniel Bell, “o modo como era organizado um estilo de vida”. Passou a ser uma cultura mediática, consumida por muitos, produzida por poucos, um mercado, uma indústria, um público que se tornou na “multidão solitária” de David Riesman. Neste contexto, a noção de cultura de vanguarda assumiu crescente importância. Os gostos, tal como as modas, estratificam-se, e os produtos culturais correspondem a essa diversidade estruturada. Os fazedores do gosto e da moda orientam a cultura e determinam os modos de vida.

A cultura chegou, também, à ciência política, com a criação do conceito de “cultura política” que Gabriel Almond e Sidney Verba estudaram comparativamente. A cultura não seria apenas conhecimento, mas também valores e afeições. A cultura política seria composta de elementos cognitivos, de elementos valorativos e de elementos afectivo-emocionais.

A decisão de atribuir este Prémio a um cientista social vem, pois, sublinhar a importância da cultura nas ciências sociais, na vida das sociedades e na análise social.



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3. A preocupação maior do cientista social é a descoberta da verdade na realidade social e nas suas interpretações, contra o empirismo facial, contra o relativismo subjectivista, contra as leituras ideológicas deturpadoras. A sociologia, como ciência da sociedade e da cultura é, por sua própria natureza, uma sociologia crítica, empenhada no desvelamento da opacidade e da espessura da realidade social, na prossecução do encantamento da verdade. “Por dentro das coisas é que as coisas são” dizia o poeta Carlos Queiroz. As ciências sociais precisam de ir ao interior das aparentes manifestações sociais, para lhes desvendarem a verdade. As aparências iludem. A realidade social, na sua verdade, é uma realidade velada e obscura a carecer da iluminação que rasga e trespassa a fenomenocidade. A investigação sociológica é uma investigação de profundidade, de interioridade.

A descoberta da verdade, dependendo muitas vezes do detalhe, é motivo de satisfação para qualquer investigador. Os cientistas sociais, tal como os descobridores, põem nome ao que encontram, classificam para identificar singularidades, e permitir comparações explicativas das causalidades. Max Weber atribuíu à razão sociológica o desencantamento do mundo. Podemos contrapor-lhe, no entanto, o encantamento do encontro da verdade.

Por vezes, a afirmação da verdade arrasta consigo contrariedades, e preços elevados. O cientista social, ao desmistificar, enfrenta as resistências cómodas das leituras instaladas.

É na procura da verdade, que ganha importância a fé para a pesquisa em ciências sociais. A fé traduz-se numa mundividência e numa axiologia, que preside a qualquer investigação. Toda a pesquisa científica em ciências sociais tem, a antecedê-la, uma concepção do homem e da própria sociedade, e os valores que lhes estão associados. A fé constitui uma iluminação prioritária para o cientista social, que inunda com claridade a obscuridade do real obnubilado. A fé é como o sol que levanta a neblina, uma espécie de “luz de nevoeiro” que permite penetrar no invisível, tornando perceptível o encoberto. A fé é, por isso, um suplemento da razão.


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A cientificidade da razão fundada apenas na experiência e na verificação empírica, reduz a amplitude do conhecimento, como o sublinhou Bento XVI, no seu discurso de Ratisbona. O porquê da existência dos factos empíricos ultrapassa a simples razão científica. “O ocidente – disse na ocasião o Papa Ratzinger– vive ameaçado por esta aversão às questões fundamentais da sua razão”. Recomendava, por isso, “a coragem de se abrir à vastidão da razão, e não à rejeição da sua grandeza.” (1) E no discurso ao Reichtag de Berlim, insistiu que a visão positivista do mundo e da sociedade, embora não renunciável, “não é uma cultura suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude”. “Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente… diminui o homem e ameaça a sua humanidade” (2). E em Paris, no Collège des Bernardins, concluíu o mesmo Bento XVI: “Uma cultura meramente positivista, que relegasse para o âmbito subjectivo, como não científica, a pergunta acerca de Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais elevadas e, portanto, o descalabro do humanismo, cujas consequências não deixariam de ser graves” (3).

Para além disso, a fé oferece ao cientista intuições, perspectivas não necessariamente racionais, que muito ajudam a construir hipóteses de investigação. A fé impregna os comportamentos sociais, que não podem ser entendidos sem recurso a ela. Muitas das realidades sociais não são compreensíveis sem a fé.

Todas as culturas precisam de ser cultivadas. A fé ajuda a cultivar a cultura. A fé – disse-o Paul Tillich, membro da Escola de Frankfurt – dá forma à cultura. “A religião – segundo ele - enquanto preocupação última, é a substância que dá sentido à cultura, e a cultura é a totalidade das formas através das quais a preocupação fundamental da religião se pode exprimir. Em suma, - termina ele - a religião é a substância da cultura, e a cultura é a forma da religião”.


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4. Esta relação entre a fé e as ciências sociais está bem demonstrada no papel que, em Portugal, tiveram os católicos no desenvolvimento das modernas ciências sociais. Foram católicos os que se empenharam na institucionalização das ciências sociais em Portugal, a nível universitário, com particular relevo para Adérito Sedas Nunes e Adriano Moreira, meus queridos mestres e amigos. A primeira licenciatura de sociologia existente em Portugal fundaram-na os jesuítas em Évora no começo da década de 60 do século XX. Os primeiros inquéritos sociológicos levados a efeito em Portugal foram iniciativa de católicos. Como foi católica a criação dos Institutos Superiores de Serviço Social, que deram à intervenção social e à investigação de campo o lugar pioneiro que tiveram.

Não houve, pois, entre nós, alheamento entre as ciências sociais e a fé católica. Esse entrosamento resultou da acertada convicção de que a ciência social e a acção social são indissociáveis, e se enriquecem mutuamente. Um dos riscos da sociologia é a sua dissociação da realidade e da intervenção social. É certo que ciência trabalha com juízos de facto, e não com juízos de valor. No entanto a sociologia, como ciência social, necessita de articular o ser com o dever ser. A sociologia precisa da filosofia. Nasceu contra ela mas, sem ela, corre o risco da inutilidade e da infertilidade.

Por muito tempo, a sociologia cresceu alheada da filosofia. A esse divórcio se deve a crise da sociologia, a que Alvin Gouldner pretendeu um dia responder com uma “sociologia reflexiva”, não livre dos valores e da moral, nem dissociada da intervenção, nem da história.


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5. Este Prémio tem o nome do P. Manuel Antunes, figura eminente de intelectual e de homem de cultura, que sempre muito admirei e de quem fui amigo. Tenho, aliás, uma dívida de gratidão para com o P. Manuel Antunes, pela importância que teve no meu percurso intelectual, que me levou, da filosofia às ciências sociais. Sem o saber, o P. Manuel Antunes influenciou a minha vida intelectual e a minha vida académica, o meu percurso de sociólogo. Não fui seu aluno, mas ele foi seguramente meu Mestre. Tornámo-nos amigos, mais tarde. Foi dele que recebi o primeiro convite para publicar na Brotéria, convite que me seria redobrado, anos depois, pelos seus sucessores.

 

6. Se este prémio pretende distinguir percursos, então é meu dever partilhá-lo com a minha mulher, que indefectivelmente me acompanhou em todas as incursões intelectuais, artísticas, e literárias, que foi sempre a primeira leitora dos meus textos, com quem sempre conversei sobre as minhas descobertas, que sempre me secundou nas minhas actividades.

Deixo este prémio aos meus filhos e aos meus netos, para que o guardem e se lembrem que a vida é, de facto, como uma árvore, com raízes que sustêm o tronco, raízes que precisam de se reavivar como fundamento e memória, e com ramos que crescem para além do tronco, que precisam de ser podados, para darem flor e fruto.

 

7. Agradeço ao Júri, na pessoa do Senhor D. João Lavrador, seu Presidente, a distinção com que me honrou, colocando o meu nome entre outros que muito admiro. Agradeço, também, à Fundação Ilídio Pinho, que aceitou associar-se a este prémio. Uma palavra especial de gratidão e amizade devo-a ao Prof. José Carlos Seabra Pereira, que mo anunciou, e ao Prof. José Miguel Sardica, meu antigo assistente e, hoje, meu colega, pelo trabalho que lhe dei com esta apresentação, excessivamente lisonjeira porque amiga.

A todos o meu sincero muito obrigado!


(1) Bento XVI, Discursos de Setembro, Lisboa, Edição das paróquias Baixa-Chiado, 2013, p.18
(2) Idem, p.60
(3) Idem, p.40


 

Manuel Braga da Cruz
8.3.2023
Imagem de topo: José Miguel Sardica, Manuel Braga da Cruz, D. João Lavrador, Carlos Magno | Rui Jorge Martins
Publicado em 08.03.2023 | Atualizado em 09.10.2023

 

 
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