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Jovens, religião e família nos últimos 20 anos

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Jovens, religião e família nos últimos 20 anos

Com o desenvolvimento das sociedades pós-industriais ou terciarizadas, a individualização ou segunda secularização torna-se o paradigma sociológico por excelência para enquadrar as transformações religiosas. As formas não institucionalizadas de religião vão ocupando o espaço das religiões tradicionais.

Esta revolução espiritual transfere a ênfase no transcendente para o indivíduo: a religião institucional decresce em benefício da espiritualidade subjetiva. Já Marcel Mauss argumentava pela crescente espiritualização e individualização das religiões. As religiões perdem tanto a sua tangibilidade como o seu cunho comunitário. O indivíduo torna-se agora o soberano do seu destino, afetando inevitavelmente a sua religiosidade.

A religiosidade juvenil atual caracteriza-se então pela primazia da felicidade individual e terrena, pela vontade de independência e de autonomia, pelo relativismo e pelo pragmatismo.

Primeiro: os jovens atuais não acreditam em salvações coletivas, mas somente na felicidade individual. Querem ser felizes aqui e agora, não numa vida após a morte, abandonando ou reinterpretando a soteriologia [salvação] cristã. Segundo: querem julgar e escolher livremente entre os produtos religiosos mais adequados para si, desenvolvendo "bricolage". Terceiro: deixaram de acreditar no cristianismo como única verdade religiosa, uma vez que a religião se tornou escolha privada e a importância das religiões se tornou idêntica. Quarto: a verdade não vem da doutrina e da teoria, mas meramente da experiência pessoal, do que a religião fornece às vidas concretas.

 

Família e lazer

A família é o fator essencial da socialização religiosa. Como instituição principal de educação religiosa, no seu seio a herança religiosa transmite-se de geração em geração como cadeia de memória. Porém, esta transmissão religiosa encontra-se ameaçada.

Primeiro: a tradição já não continua a sustentar a vida individual e coletiva. Segundo: as crenças são legitimadas não pela autoridade tradicional mas pela sua utilidade. Terceiro: as crenças não são recebidas passivamente mas são ativamente consumidas. Assim, as famílias são desafiadas hoje a conseguir ligar as experiências individuais aos conteúdos religiosos associados a determinada linhagem crente.

Para além destas alterações conjunturais, a mudança substancial da estrutura familiar contribui seguramente para quebrar os elos da cadeia. De facto, as pessoas casam-se menos, mais tarde e mais civilmente; as ruturas conjugais crescem; as crianças nascem progressivamente em menor quantidade e no seio de coabitações. Ou seja, a reprodução das linhagens crentes tradicionais, assentes em casamentos religiosos estáveis e em famílias alargadas, fica certamente comprometida com estas transformações em curso.

Às mudanças na família juntam-se as modificações no lazer. De facto, no lazer os jovens expressam-se na sua especificidade e diversidade, construindo a sua identidade sobre a experimentação afetiva, social e cultural. Durante as duas últimas décadas, estas experiências foram-se alterando paulatinamente: as afetivas assentando na expressão sexual, as sociais desligando-se da interação presencial e as culturais convertendo-se especialmente em formas de consumo.

A mudança nas experiências afetivas implicou uma mutação ontológica importante. A passagem da conceção cristã de pessoa como ser unitário de corpo e alma à conceção dualista de objeto como exterior à pessoa. Esta transição levou os jovens, mais permeáveis à novidade, a desautorizar quaisquer intromissões relativas ao seu corpo, agora seu objeto pessoal. Certamente esta mudança foi acelerada e desenvolvida com o regime democrático, pela liberdade e igualdade inerentes. Primeiro: a TV, o cinema, a música, a internet, a publicidade difundem uma cultura erotizada. Segundo: a inserção das mulheres no mercado de trabalho liberta os filhos da tutela materna, oferecendo-lhes oportunidades experienciais. Terceiro: a disseminação da contraceção diminui o risco de gravidezes indesejadas.

As tecnologias de informação e comunicação (TIC) revolucionaram a forma como as pessoas se relacionam. Enquanto no princípio dos anos 1990 o computador, a internet e o telemóvel surgiam em Portugal, passados vinte anos todos os jovens os usufruem. Embora as TIC sirvam para aproximar e para reforçar laços, possibilitam também o afastamento, o isolamento das pessoas, a existência de vidas centradas na virtualidade e não na realidade, assim como a fragmentação das histórias pessoais. Como defende Zygmunt Bauman, as relações pós-modernas são fragmentárias, inconsequentes, pequenas e sem obrigações mútuas, cortando o envolvimento interpessoal.

As experiências culturais são crescentemente pautadas pelo consumo. Por um lado, a procura expandiu-se com o alargamento do poder de compra da classe média. Por outro lado, a oferta dilatou-se não só pelo estímulo da vontade de consumo e pela extensão dos pontos de retalho, como também pela oferta de mais produtos e serviços a preços atrativos. O consumo fornece aos jovens identidade, autonomia e relação, muito expressivas nas saídas noturnas. Com a quantidade e a diversidade de oferta aumentada nas duas últimas décadas, os jovens frequentam espaços profundamente marcados pelo consumo (de música e de álcool, pelo menos), que lhes confirmam ou fornecem identidade e onde podem livremente expressar-se e relacionar-se. Como defende Gilles Lipovetsky, os princípios do hiperconsumo invadem a alma religiosa: transitoriedade, liberdade de pertença comunitária e de escolha de comportamentos, primazia do bem-estar subjetivo e da experiência emocional.

 

Resultados e discussão

A figura 1 apresenta os resultados das crenças católicas. Em 1990, as crenças mais importantes foram "pecado" (47%) e "Deus pessoal", seguidos de "céu", "vida após a morte" e "inferno" (14%), com uma amplitude de 33%.

Todas as crenças cresceram (pelo menos +9%), principalmente "vida após a morte" (+ 24%) e "inferno" (+22%).

Assim, em 2008, "vida após a morte" e "céu" trocaram as suas posições e a amplitude desceu para 24% (pecado - 60%, inferno - 36%).

A figura 2 mostra os resultados das práticas católicas e das atitudes. Cerca de 50% mantiveram os seus momentos de oração/meditação de uma ronda para outra, enquanto a frequência de serviços religiosos baixou 10% para 16%.

Em 1990, homossexualidade era o aspeto mais rejeitado, seguida por eutanásia e aborto. Em 2008, tiveram valores próximos: homossexualidade desceu significativamente (32%), enquanto eutanásia diminuiu 16% e aborto aumentou 2%.

Relativamente às crenças não católicas, reincarnação passou de 17% para 35% e espírito ou força vital de 20% para 25%.

Porque é que a crença no pecado e no Deus pessoal é maior e no inferno é menor? Porque é que todas as crenças aumentaram, principalmente no inferno e na vida após a morte? Para ambas as questões, o desenvolvimento da individualização induz a reinterpretação heterodoxa das crenças ortodoxas ao sabor das necessidades individuais. Contudo, destacam-se crenças mais facilmente reformuladas em forma heterodoxa, como são eventualmente o pecado e o Deus pessoal. O crescimento maior da crença no inferno e na vida após a morte pode resultar dos seus valores significativamente mais baixos em 1990, tendo assim mais espaço para subir.

A frequência de serviços religiosos baixou possivelmente por três razões. Primeiro: a erosão da salvação cristã levou ao descrédito dos ritos salvíficos. Os jovens de hoje estão mais preocupados em salvar os pobres, a natureza ou os seus corpos e mentes. Segundo: a incoerência de sacerdotes e religiosos, mais divulgada pelas TIC, desencorajou a assistência à missa. Terceiro: o consumo, as saídas noturnas, o sexo e as TIC retiraram tempo cronológico e, principalmente, tempo psicológico, para outras atividades, a não ser que sejam divertidas e permitam liberdade de expressão.

Não serão as experiências de concertos ou de noite, com rituais particulares, guiadas por deuses temporais (ídolos musicais) e sacerdotes noturnos (DJ, similares às experiências xamânicas? Na verdade, os xamãs ouvem música, dançam e consomem substâncias psicoativas para estimular estados alterados de consciência (transes) para interagir com o mundo espiritual. De facto, estas liturgias noturnas de recorte xamânico adequam-se mais ao espírito juvenil.

A resistência da oração pode ser enquadrada no desenvolvimento da individualização. As formas e conteúdos coletivos de oração convertem-se em orações individuais, conversas pessoais livres com o divino, podendo no limite tornar-se quase a única expressão de religiosidade. Alguns autores chegam a defender a oração como forma moderna de confissão. Para eles, a oração reflete a responsabilidade e o desenvolvimento individual para controlar o futuro e ultrapassar fraquezas, sem intermediários ou autoridade, sem pecado ou punição. A sua flexibilidade e acessibilidade (qualquer pessoa pode aplicá-la em qualquer lugar e tempo) vão ao encontro da individualização.

Porque é que a recusa da eutanásia e principalmente da homossexualidade baixou, enquanto do aborto manteve o seu valor? Primeiro: qualquer tipo de autoridade, nomeadamente autoridade eclesiástica, é mal recebido pela juventude. Eles gostam de opinar sem se prenderem a laços externos, porque se consideram fonte principal das suas regras. Quando se lançam fora da Igreja, provavelmente seguem mais as suas próprias regras. Segundo: TV e cinema ajudaram possivelmente a propagar um ambiente recetivo à eutanásia e homossexualidade. Figuras públicas, estrelas de TV ou de música assumindo a sua condição homossexual, assim como a educação sexual nas escolas, provavelmente encorajaram a aceitação da homossexualidade. Terceiro: possivelmente o aborto poderia não descer mais, enquanto os outros indicadores baixaram até ao valor deste. Talvez as três atitudes tenham alcançado o mínimo valor possível, relativo aos católicos convictos.

Porque é que a crença no espírito ou força vital e na reincarnação aumentaram e principalmente esta última? Com a disseminação das TIC, o mercado espiritual expandiu-se, permitindo a escolha livre e ampla dos produtos religiosos. Jogos, filmes, séries de TV e telenovelas estão provavelmente a estimular esta mudança. Também doutrinas da Nova Era e do budismo espalham crenças no sagrado imanente e não transcendente, assim como nos ciclos cármicos. Assim, talvez ambos os indicadores interessem a juventude, competindo com a ressurreição e o Deus pessoal. A força maior da reincarnação resulta porventura da ideia de permanência infinita da alma neste mundo, numa eterna viagem cíclica, o que vai ao encontro da conceção atual da eterna juventude em que a morte foi morta.

Por último, a família apresenta-se como fator chave na interpretação destas alterações. Fonte capital de religião, Igreja doméstica, a família tem papel determinante. As famílias tradicionais vão diminuindo, dando lugar a tipos conjugais diversos, gradualmente mais pequenos, assentes no casamento civil ou na coabitação e marcados por ruturas. Os estudos apontam para que a probabilidade de os filhos de casais mais religiosos, portanto inseridos em famílias tradicionais, serem mais religiosos seja maior.

Conjeturo ainda que a quebra do número de crianças com o crescimento da riqueza e o decréscimo da autoridade parental diminuiu a religiosidade juvenil. Os miúdos, mais protegidos mas mais livres nas suas vidas, têm menos capacidade para o sacrifício, para a responsabilidade, para o compromisso, pelo que não só são mais impacientes para desempenhar práticas religiosas repetitivas, mas também seguem as suas próprias regras e acreditam no que lhes apraz.

 

Conclusões

Entre 1990 e 2008, os jovens portugueses passaram a acreditar mais, tanto em crenças ortodoxas como heterodoxas, a praticar e a seguir menos as normas católicas. Estas conclusões limitam-se, contudo, ao período em análise, período máximo disponível. Esta ressalva é abreviada pela qualidade do EVS, certamente a base de dados internacional com indicadores mais interessantes sobre religião. Desta forma, espera-se que os dados reflitam com fiabilidade a realidade estudada.

De facto, como defende Grace Davie, respeitada socióloga da religião, as práticas decrescerão, enquanto as crenças manterão a sua presença, embora crescentemente pessoais, heterogéneas e demarcadas da instituição religiosa, principalmente entre os jovens. Estas alterações religiosas advêm também das mutações na família e no lazer, como tentei desenvolver neste artigo. Mudanças na estrutura e no papel da família como transmissora religiosa explicam possivelmente a evolução religiosa em todos os seus três tipos de indicadores.

Mudanças no lazer (sexualidade, TIC e consumo) explicam porventura a descida da assistência à missa e do seguimento das normas católicas, e o crescimento das recomposições religiosas, principalmente através das TIC. Em suma, a individualização é traço principal da nossa modernidade, como é reconhecido por vários autores.

 

José Pereira Coutinho
Doutor em Sociologia, ISCTE-IUL
In "Brotéria", fevereiro 2014
Publicado em 21.01.2015 | Atualizado em 23.04.2023

 

 
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A mudança nas experiências afetivas implicou uma mutação ontológica importante. A passagem da conceção cristã de pessoa como ser unitário de corpo e alma à conceção dualista de objeto como exterior à pessoa
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O desenvolvimento da individualização induz a reinterpretação heterodoxa das crenças ortodoxas ao sabor das necessidades individuais
A erosão da salvação cristã levou ao descrédito dos ritos salvíficos. Os jovens de hoje estão mais preocupados em salvar os pobres, a natureza ou os seus corpos e mentes
A resistência da oração pode ser enquadrada no desenvolvimento da individualização. As formas e conteúdos coletivos de oração convertem-se em orações individuais, conversas pessoais livres com o divino, podendo no limite tornar-se quase a única expressão de religiosidade. Alguns autores chegam a defender a oração como forma moderna de confissão
As práticas decrescerão, enquanto as crenças manterão a sua presença, embora crescentemente pessoais, heterogéneas e demarcadas da instituição religiosa, principalmente entre os jovens
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