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Leitura: "Indícios - À escuta dos traços de Deus"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "Indícios - À escuta dos traços de Deus"

«O nosso intento primordial aqui é o de acolher/escutar originariamente o evento da criação estética em sua auto-manifestação de sentido»: este é o propósito de "Indícios - À escuta dos traços de Deus", livro de João Paulo Costa recentemente lançado pela Universidade Católica Editora.

A obra «procura evidenciar a multiplicidade e a polifonia de rumores acerca de Deus, do modo particular da presença cultural do "Verbo"», assinala a sinopse do livro, que chama a atenção para «rastos e traços que permanecem frequentemente invisíveis» devido à saturação de «objetividade e de crenças» que tornam os sentidos «indisponíveis para a admiração, para a atendibilidade do paradoxo da realidade».

«Das escrituras várias às imagens cinematográficas, dos murais pictóricos à invocação poética, da razão filosófica ao saber teologal, tudo é aqui possível indiciação da “presença invisível” de “Deus sensível ao coração”», refere o autor.

Nascido em 1985, João Paulo Costa é padre da arquidiocese de Braga, tendo estudado em Roma e Paris. Realiza atualmente o doutoramento em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, ao mesmo tempo que leciona na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

 

Prelúdio
In "Indícios - À escuta dos traços de Deus"
João Paulo Costa

No começo era o Indício, o vestígio, a auscultação do ‘sussurro de um silêncio ligeiro’, que adveio carne! Por e entre aparições não se acede a Vida senão por indiciações tentaculares. E sempre necessário um mínimo de mostração que indicie a plausibilidade das nossas perceções do mundo. Ter indícios de algo e a expressão da impossibilidade de possuir imediatamente o detalhe que se vai mostrando com a pratica da escavação. Muitos desses indícios advêm como um evento “impensado a pensar” movendo e germinando tonalidades afetivas múltiplas: pasmo, gozo, desejo, admiração, temor, solidão, pudor, sofrimento, rememoração ou retração.

Sem esse índice mínimo de inteligência afectiva (Logos afeccional), a credulidade comunitário-individual, político-social, humano-cultural, poderá tornar-se um ato de incredibilidade. O estilo indicial de visões corpóreas manifesta já a presença de uma ausência, qual “intocado de pensamentos” (Paul Celan), em desvelamento contínuo por múltiplas mediações. A atenção a esses indícios na voz do Verbo pode constituir-se como rumor de uma presença sussurrada (cfr. 1Re 19,12), in-tocável e in-tangível, adversa a uma possível patológica possessão religiosa. Noli mi tangere (cfr. Jo 20,17)! A questão heurística que atravessa este itinerário é a de saber se a experiência sensível do logos afetivo poderá constituir-se como a condição figural e a cifra de possibilidade para o encontro justo com o outro próximo ou o diversamente outro, Deus, sem os reduzir a uma mera experiencia objetual?

A exposicao inédita Traces du sacré, do Centre Georges Pompidou, Paris 2007, com incidência na arte do séc. XX, poderá ser uma expressão visível desse consentir cultural ao crer religioso ou, pelo menos, indicialmente, a dimensão sacral da vida. Estes traços rumorosos da transcendência relevam, de algum modo, as metamorfoses culturais do cristianismo contemporâneo na medida em que as consideramos lugares de charneira de habitação do Verbo entre nós. Na mesma linha foram os Encontros da Imagem – Braga 2014, subordinados ao tema Hope & Faith, com extraordinária exposição estacional de fotografias alusivas as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) em sua refiguração de existenciais filosófico-teológicos. Um outro evento indicial, ainda mais recente, Le sentiment religieux au cinéma, um ciclo de filmes organizado pelo Museu do Louvre, com especial incidência na transcrição da fé cristã na realização cinematográfica (desde Dreyer a Reygadas), acompanhado da exposicao Poussin et Dieu.

Só de si, este microclima cultural seria motivo suficiente para uma ampla habitação e reflexão filosófico-teologal. Na verdade, o principio da encarnação, em seu sentido amplo, teológico e fenomenológico-estético, suscitou e parece ainda desencadear visões, impressões e reinscrições in-tempestivas sempre in-atuais. “A encarnacao muda tudo”, escrevia o filósofo frances Merleau-Ponty. A encarnação – enquanto inscrição corpórea de demoração espiritual e de experiência primicia da graca – muda tudo porque toca de perto a facticidade da nossa existência e as suas contradições reais. A ideia musical da encarnação do Logos e o modo de se manifestar são o tema principal deste motete que se quer polifonicamente dissonante. As variações metamorfósicas e as modelações atonais da nossa contemporaneidade consentem a presença de uma ausência que nos excede e ao mesmo tempo indicia a irrupção de algo novo.

O Logos intangível, a Palavra, o Verbum, a inteligencia, o discurso, a razão afetiva ganham consistência real na tangibilidade da carne que expressa a nossa comum humanidade, ou melhor ainda a “traça de uma praxis humana” (Maurice Merleau-Ponty). O corpo de carne vivente e o lugar de uma abertura relacional originária de si mesmo ao outro próximo de si e do si a Deus enquanto Outro de nós-mesmos que abraça e autentifica o nosso caos e as nossas tribulações mais obscuras (cf. Mc 2,17). A reabilitação da corporeidade afetiva, na sua profundidade fenomenológico-estética, é um ato imprescindível do viver teologal. E o itinerário espinhoso do corpo fenomenal ao corpo teológico ressuscitado e da sua reversibilidade quiástica que exclui seguir a via oppositorum entre as diversas sapiências. A horizontalidade e a “co-recetividade sensivel que nos une originariamente uns aos outros” (Natalie Depraz) são o começo de um diálogo aberto entre a racionalidade filosófica da finitude humana e a experiencia teologal da transcendência. Encetar esse trajeto não implica necessariamente que o ponto de chegada seja o mesmo. O ato de questionar como inicio de toda a procura corresponde ao trajeto hospedal inaugurado e praticado pelo jesuita Michel de Certeau, que perguntava “como numa dada situação epistemológica o cristianismo é pensável” e vivível em suas práticas de aproximação ao Mistério Santo na história.

No respeitante à nossa comum humanidade, ao mistério do homem e das suas contradições no corpo a corpo com a interpelante “presença e ação de Deus no mundo” (Merleau-Ponty), a interlocução entre as diversas linguagens não só e possível como desejável. Esta postura dialógica possível deve questionar toda a “tradição filosófica (e teo-lógica) que pensou sempre mais por distinções e por oposições que por reciprocidade”(Mauro Carbone). Enquanto leitura cristã interpretativa da existência humana, a hermenêutica da voz corpórea do Logos poderá ser a ressonância tímbrica do dom da reciprocidade imprescindível para sair quer de uma certa religiosidade (crendice sem habitação cultural) quer de um determinado culturalismo (cultura sem distância incarnacional). Essa Voz do Logos presentifica-se no ato criador, na epifania onírica dos profetas, nas des-velações dos poetas e na vigilância atenta dos místicos. Em tudo esta Voz se faz carne num timbre consistente que faz renascer de novo quem a escuta (cfr. Jo 3, 1-21). A Voz do dabar divino habita o inesperado (cfr. Jo 3,8) e, por isso, surpreende-nos mesmo na apatia cinestética da aparente mania pampsiquista contemporânea.

Desde o pensamento grego estóico-platónico, sem ter deixado de contaminar uma parte da inteligência cristã de outrora e de hoje, que sobre a carne recai o odioso, a origem do mal, da existência precária, da morte e da vida, do nascimento e da ressurreição, da condenação e da salvação. Todavia, sem o paradoxo da incorporação do negativo e da sua possível metamorfose em Deus-mesmo, a encarnação converter-se-ia facilmente num fenómeno de excesso de fantasia e apagamento da “negatividade” e da kenose da existência. Como escreve justamente Byung-Chul Han, no seu livro A agonia do Eros, diante de um presente sempre mais otimizado, “é proibida toda a forma de negatividade”. Portanto, é essencialmente na fragilidade da carne que a potência de Deus salva (cfr. Ez 18,23; 2 Cor 12, 8-11; Lc 5, 31).

Assim, prosseguirmos a via de um cristianismo ou de um crer indicial, capaz de indiciar novos modos do Verbo se dar e exprimir contemporaneamente, e assumir de certa forma a plausibilidade de uma “fenomenologia da nascença corporal” em vista de uma maturação de uma teologia do renascimento carnal” (Emmanuel Falque). A habitação cultural é um ato de humanização que carnaliza horizontes novos de sentido impedindo a redução do humano à bestialidade de ser um somatório de atos vitais e a passividade evasiva da tecnocracia atual. A passagem dialética da Voz sussurrada ao logos corpóreo, como regista o filósofo Emmanuel Falque, poderá dizer a possível originalidade de uma “hermenêutica da voz corpórea” do Logos carnal que habita em nós e e para nós, humanos (cfr. 2 Cor 3,3). Esta comunidade pática que nos une e nos torna semelhantes na carnalidade vivente reenvia-nos à encarnação cristíca e à possibilidade de nela participarmos singularmente. Dito doutro modo, com a maravilha do escritor Alexis Jenni, no seu formoso livro Son visage et le tien: “Deus não pode ter rosto, mas os rostos sobrepostos de todos aqueles que O escutam e O sentem formam o rosto de Cristo, rosto múltiplo e doce, rosto colectivo numa só pessoa, assemelhável a todos e a cada um”.

Jerome Alexandre, autor do livro L’art contemporain, un vis-à-vis essentiel pour la Foi, respondendo à interrogação da possibilidade de relação entre fé e arte contemporânea, aponta que a “arte interroga em profundidade a realidade e exprime-a sob um modo sensível. Quanto à fé cristã, ela crê que Deus se deu ao homem no sensível. Ela crê que Deus ama e salva aquilo que Ele criou: a carne, as coisas visíveis quanto as invisíveis, o mundo. Este ponto comum […] poderá explicar nomeadamente a extraordinária fecundidade artística do mundo cristão ao longo dos séculos”. A carne é, portanto, condição para abertura de si ao mundo, como nascer e abrir-se em “carne e osso” (Miguel de Unamuno) a relação que nos constitui ontologicamente como pessoas.

O mistério da carne e da sua ambiguidade esta bem presente, por exemplo, nas figuras da artista Berlinde de Bruyckere, cuja obra de referência se intitula We are all flesh, ou na pulsão sensitiva do pintor Francis Bacon, ou ainda na mostração poética da animalidade em Lucien Freud.. A obra de Bruyckere e um ato de reescritura da carne onde os indícios de revelação transparecem e emergem na redução husserliana “em carne e osso”. Aparecem, nem sempre explicitamente, e revelam a procura de uma augusta autenticidade interior e de uma lúcida folia. A perspetiva incarnacional do cristianismo é a afirmação da condição corpórea como lugar da experiencia de Deus e da graça que salva. Como diria Tertuliano, na sua obra De resurrectione carnis, “a carne é a charneira da salvação”, porque ela é o modo pelo qual nos fazemos a experiencia viva das ambiguidades da nossa existência e também daquilo que possivelmente nos excede, Deus.

Neste corpo de carne que somos reside possivelmente a tematização de toda a existência – criação, encarnação, salvação, mal, justiça, desejo, pecado, razão, afeto, ódio, amor, vida e morte. O Logos (Verbum) é o mais denso e incontornável paradoxo, não abordável com simplificações morais ou logicismos imediatos. Na figura do paradoxo, profundamente enraizado nas Escrituras sacras, reside a possibilidade do “encontro inesperado do diverso” (Gabriela Llansol). Deus revela-se de modo sempre novo e inesperadamente inagarrável, pois, como diria o escritor Miguel Unamuno, no seu livro A agonia do cristianismo: “Os Evangelhos estao repletos de paradoxos, de ossos que queimam”, já que neles há um “jogo de combinações quase ilimitado” (Yves-Marie Blanchard). Paradoxalmente, seguindo o mesmo alinhamento, escreve o teólogo Henri de Lubac, no seu profético livro Paradoxes: “o Evangelho está pleno de paradoxos, pelos quais o espírito é sacudido […]. E é pelo menos uma questão, de saber se toda a doutrina espiritual forte não deve necessariamente revestir uma forma paradoxal”!

Jogar este jogo de entrelaçamento de linguagens a partir da forma paradoxal na aproximação a nossa carnalidade comum poderá abrir possibilidades de encontros novos e a superação de temores atuais que minam a confiança cultural e espiritual entre os humanos. Mas o cristianismo contemporâneo parece viver um certo impasse cultural que dificulta a aceitação da corporeidade como lugar de revelação do Logos, “ícone visível do Deus invisível” (Col 1,15). Por um lado, a ideia de um mundo em devir agiliza um certo desprezo pela mundanidade. Por outro, a cultura ultramediática do corpo genitalizado agudiza a desconfiança dos mais ascetas relativamente a toda a carnalidade. O retorno do neo-gnóstico dá-se em força, e não apenas ao nível do pietismo, mas particularmente ao nível de um certo elitismo filosófico-religioso. A este se acrescenta um outro fator não menos importante, e talvez o mais relevante, que se manifesta na fragilidade da receção cultural e da sua habitação crítica por parte da inteligência da fé. E a pergunta que o teólogo Tertuliano, no seu tratado A ressurreição dos mortos, nos coloca: “por que é que tu reprovas na carne aquilo que esta a espera de Deus, aquilo que é esperança de Deus?”.

A elaboração de uma nova est(é)tica da corporeidade ou de uma reflexão sobre a “carne das imagens” (Mauro Carbone) em visões/impressões/reinscrições poderá ser de grande pertinência cultural para o cristianismo contemporâneo de modo que a relação entre transcendência e finitude, matéria e espírito, corpo e mente, não coexistam dualisticamente, mas numa relação unitária diferenciada. O retorno dos grandes temas do cristianismo, indicialmente presente no interior da cultura contemporânea, sob a forma de traços e de esquissos, manifesta-se ainda amplamente em diversos modos e lugares. Na habitação intercultural hospedal poderá estar a oportunidade para um dialogo critico, não virulento, no âmago da chamada “idade secular” (Charles Taylor) à procura, na feliz expressão do filósofo francês Luc Ferry, da “divindade perdida”. Mesmo no silêncio da nau do templo sem divindade, os rumores de transcendência permanecem em latência e aparecem doutro modo, pois, como adverte o autor da carta aos hebreus: “Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos” (Hb 13,2).

Se o cristianismo e ainda um corpo vivente, ele é-o essencialmente por meio do paradoxo, que torna profundamente significativo o existir e a culturalidade humana. O cristianismo em si mesmo, paradoxo dos paradoxos, faz pensar e dá que pensar. Seria um retrocesso histórico e cultural voltar a considerar que tudo o que não fale dogmaticamente de Deus é necessariamente contra Deus ou a reduzir toda a filosofia/arte/ciência nao-teísta a negação das verdades reveladas. Há uma verdade intrínseca a cada interioridade humana, a cada linguagem, expressão, gestualidade ou tonalidade não redutível apenas a modalidade do crer religioso explícito. É nesta simbiose crítico-dialógica de interação refletida entre cultura e cristianismo que o logos fenoménico e escriturístico poderão adquirir uma espessura corpórea e dar sentido a uma nova inteligibilidade do mundo.

O pintor Paul Klee, no seu belo livro Escritos sobre arte (“O credo do criador”), escrevia que a “arte não reproduz o visível, torna visível” o invisível, por mais perto ou longínquo que ele se manifeste. Do mesmo modo que Cristo, o ícone visível, dá a conhecer Deus porque a Ele jamais alguém o viu (cfr. Jo 1, 18), o homem religioso não pode ter a pretensão da revelação absoluta de Deus em suas manifestações cultuais ou culturais. O verdadeiro “drama” de hoje não será o do ateísmo, mas a impureza ideológica de um teísmo desencarnado a roçar a um certo angelismo puritano. O Deus cristão, incarnado e crucificado, não pensa o mundo, habita-o, e assume as nossas feridas e ambiguidades transfigurando-as. É, nesse sentido, pertinente a expressão de Blaise Pascal, nos seus famosos Pensées, quando escrevia que “o homem não é nem anjo nem besta, mas quem quer ser anjo, acaba por ser besta”.

Reconhecendo os limites do nosso campo de visão – sempre relativo a um espaço-tempo cultural –, este breve ensaio apresentara apenas alguns indícios declinados em impressões, visões e reinscrições. Aparições convergentes de um mesmo fenómeno, do humano em sua transcendência, filosofia, teologia e arte nutrem-se mutuamente sem se confundirem. A questão que se coloca é a de saber se poderemos dar crédito a esses indícios que aparecem e se eles são passíveis de qualquer ato de credulidade religiosa. Em sociedades abertas onde o respeito pela dignidade do próximo é a matriz ética de todo o corpo comunitário, juridicamente, os indícios constituem per si a condição inicial fundamental para um processo justo. Ao mesmo tempo, os indícios significam que algo se dá e advém até nós (passagem de uma metafísica da transparência absoluta a uma fenomenologia do dom inaparente), independentemente da operação que verifica a sua veracidade ou falsidade.

Nesse sentido, não será que o exercício da auscultação atenta aos indícios ou aos “rumores” da transcendência na cultura contemporânea é já sinal e presença de uma alteridade que nos alcança como evento inesperado? Não será o humano contemporâneo ainda um “ouvinte da Palavra”, na feliz expressão do teólogo católico Karl Rahner? Se assim é, de que modo se manifestam ao “olho que escuta” (Paul Claudel) os rumores de Deus? Radicalizando um pouco a questão, será que a visão sentida das coisas não se dará essencialmente de modo perfilado? Em cada perceção ou experiência sensível não vemos nem alcançamos tudo com um só olhar. Como escreve Jean Greisch, no seu livro programático L’âge herméneutique de la raison: “Tanto no encontro do texto, como na experiência da filosofia, da arte e da história, uma verdade se manifesta, chega uma verdade, uma verdade se impõe”, à espera de ser hospedada e compreendida. Mesmo se não vemos a coisa em si mesma, a coisa mesma dá-se-nos a ver em relação intima com quem vê e como vê ou pressente o sentido que nesse evento de graça se prefigura.

A propósito do ato de ver, o ensaísta Goncalo M. Tavares, no seu belo livro Rezar na era da técnica. Posição no mundo de Lenz Buchmann, escrevia que “não importa o lugar onde estamos mas o campo de visão e a posição relativa”. Trata-se, portanto, de ponderar aqui uma experiência crente indicial condivisível ao outro homem. Uma experiência percetiva corpórea que indicie qualquer coisa de abertura recetiva ao diverso. Estes esquissos não pretendem ser exegese nem descrição técnica dos textos ou obras aqui apresentadas. Eles pretendem somente escavar um sentido possível no entrelaçamento fenomenológico de linguagens aparentemente distantes. Pode ser que em alguns dos casos a interpretação apresentada seja entendida como forçada. Mas, se a arte ou o pensamento profundos, que vão muito além do modelo estetizante da arte pela arte, dão a pensar qualquer coisa de novo, ou melhor a percecionar silenciosamente a diurnidade noturna da existência, então aí se revela possivelmente a sua fecundidade.

Este ato de entrelaçamento intencional corresponde à nossa convicção de que a experiência teologal vivida deverá percorrer caminhos novos de elaboração e de estilo sem perder a sua pertinência publica de questionamento a si mesma e aos outros. Este exercício em maturação de relacionar discursos de instancias de sentido diferenciáveis – como a arte, o cinema, a literatura, a fenomenologia, a estética ou a ciência – numa perspetiva indicial corresponde apenas à tentativa de inaugurar um estilo diverso (modo outro de transcrever o não-visto ou o impensado com grau de tra(d)ição que isso implica) de habitar a nossa contemporaneidade. No seu propósito originário, a manifestação artística é autêntica quando qualifica o humano, buscando a verdade das coisas, tal como as Escrituras Sacras, no paradoxo que faz pensar e dá a pensar. E o máximo paradoxo será mesmo reconhecer que não são os sábios que têm a ciência interpretativa dos textos sacros que fazem a experiencia da Palavra vivente, mas os que reconhecem a sua impotência no confronto dos dilemas do mundo.

O sociólogo americano Peter Ludwig Berger entende por “índices de transcendência os fenómenos que sem sair do quadro do nosso universo “natural” parecem visar alem da realidade empírica”. E que outra linguagem se não a da inspiração artística e poética para manifestar esses índices e indícios de transcendência? Não deveria o ato de fé inspirar-se nas artes para discernir outros modos de dizer a relação entre a divindade e a humanidade, ou atender aos indícios da carnalidade das imagens várias enquanto “figuração no visível do invisível” (Merleau-Ponty)? Mais do que opor ou separar, não será mais viável entrelaçar a revelação da sabedoria do Verbo com a sabedoria do mundo (cfr. Rm 1, 21-22)? Diante da barbárie ideológico-fundamentalista que grassa na contemporaneidade, é possível hoje continuar com o discurso apologético da via oppositorum entre sabedorias?

A presença indicial na nossa condição corpórea ou a plausibilidade de um cristianismo mais eventual-indicial pelas obras evangélicas do que propriamente evidencial pelas demonstrações explicativas poderá ser também um grito contra os sacerdotes tanto da evidência como do “eclipse/morte” de Deus. A inflação cultural desta expressão desenquadra-se frequentemente da realidade e das vivências culturais do humano contemporâneo. Entre outras, a causa deste temor e tremor poderá ser o fechamento identitário tribal e a inépcia em frequentar/habitar outros lugares que não o próprio habitat natural religioso. A crise não é tanto de proposta quanto de receção de uma possibilidade nova! A absolutização de uma visão do mundo (religiosa-politica) provoca o “medo de existir” (José Gil) e conduz a autorreclusao identitária em formas violentas – “medo e arrogância” (Enzo Bianchi). A assunção da diferença da alteridade implica querer conhecer intimamente o outro no sentido de o habitar carnalmente para aí dialogar sem preconceitos nem ideologismos identitários.

A auscultação da presença de indícios de transcendência na cultura contemporânea exigirá, portanto, uma hermenêutica da hospitalidade e da habitação fenomenal intercorpórea dos espaços e dos tempos onde essa presença eventualmente se manifesta. A abertura indicial corpórea – figurada na escultura Concetto Spaziale (Natura) do artista italiano Lucio Fontana – das diversas linguagens para expressar o originário entrelaçamento de Deus com o humano e da abertura deste ao outro próximo qualifica-nos como seres capazes de autotranscendência. Para tal, só a prática paciente do bisturi disposto a rasgar a consistência material do visível poderá intuir a presença mediada da invisibilidade da Vida (cfr. Hab 2,2). A escultura de Fontana é um “talho no sentido” (Jean-Luc Nancy) que permite a hospitalidade do estrangeiro e consideração da sua irremediável diferença. Parafraseando o poeta Christian Wiman, diríamos que o negrume da pedra rochosa de Fontana não interdita a possibilidade de entrever um “bright abyss” ou um “clarum per obscurius”. O memorável livro O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupery, di-lo doutra forma: “as coisas realmente importantes são muitas vezes invisíveis para os olhos e só podem ser vistas com o coração”, através da visão em profundidade.

O cristianismo, em sua nua abertura kenótica metamorfoseante da humana finitude em Deus-mesmo, poderá tornar-se indicial (cristianismo indicial em sua capacidade de expressão da figura crística) de algo diverso e altamente qualificativo do crer e do pensar ético-cultural em sua modelação escato-est(é)tica. O fundamental não será tanto saber qual ou que originariedade nos funda, mas como essa manifestabilidade nos excede e abre as diferenças narrantes da historicidade humana. Seguindo os rastos das intuições de um dos génios do cristianismo contemporâneo, de nome Karl Rahner, o qual, incompreensivelmente na teologia e na praxis eclesial hodierna, caiu num certo esquecimento, o que aqui tentaremos indiciar é que “entre a imagem do mundo e a verdade Deus há uma relação recíproca que os separa e que os une” (K. Rahner). Nesse mesmo sentido, mas com outra linguagem, o escritor Hermann Hesse, no seu romance Narciso e Goldmundo (1930), coloca em diálogo um monge místico (Narciso, racional e culto) e um artista mundano (Goldmundo, criativo e sensível). No final do romance, o monge Narciso reconhece que

"muitos caminhos conduzem ao conhecimento e que a via do pensamento abstrato não é a única, nem pode ser a melhor. De facto, é a minha via e considerá-la-ei. Mas vejo-te, pela via oposta, concretizar também profundamente o segredo de ser e a exprimi-lo de modo bem mais vivo do que uma grande parte dos pensadores […]. O nosso pensamento é uma constante abstração, ele separa-se do sensível, tenta construir um mundo puramente espiritual. Mas tu, tu trazes justamente no coração aquilo que é inconstante e mortal e proclamas o sentido do mundo naquilo que é fugitivo […]. Os dois métodos são humanos, talvez imperfeitos; mas há mais inocência na arte".

Mas, tal como Narciso, estará o filósofo, o religioso ou o ateísta, na aparência da frágil possessão de verdades absolutas, disposto ao reconhecimento de outras verdades possíveis e de novos indícios iluminantes no espaço da interculturalidade humana que nos é comum? Num contexto intercultural e inter-religioso como o nosso, o ponto espinhoso do saber teologal residirá sempre em saber em que medida e de que modo a Revelação cristã interdepende e intercomunica com as condições de acesso e de receção humana em sua existência histórica. Não é precisamente a pensabilidade de uma impossibilidade, que um homem singular seja também Deus, que tem marcado a prática da criatividade literária, artística e filosófica do Ocidente, entre a aceitação e a recusa de crer?

Estes indícios e muitos outros, legados por mentes pensantes e criativas da nossa contemporaneidade, poderão constituir-se pilastras de apoio para outros andamentos e diálogos. Muitos dos “esquissos picturais” (Anselmo de Cantuaria), presentes na criatividade artística hodierna, coincidem com a reflexão teológica do cristianismo ao longo dos tempos, tais como: o corpo, a encarnação, a imortalidade, a morte, o logos, o mal, a violência, a graça, a metamorfose, a transfiguração, a revelação, a vida, a fé, Deus, o homem, o mundo, o eros e o ágape. Aliás, essa preocupação subjaz à própria elaboração dos escritos neotestamentários e patrísticos onde há uma sadia “contaminação” entre a novidade crista nascente e as ideias culturais e literárias helenico-judaicas (cfr. At 17,28).

Porém, inevitavelmente, hoje, esses mesmos lugares aparecem reinscritos de outro modo e vividos com outra linguagem como a poesia, a pintura, o cinema, o romance, a escultura, as artes performativas, a estética, a ciência. Uma epifania eloquente dessa presença subsolar, do elemento ut pictura poesis de Horacio, é o mural pictural Ecriture rose (1958-1959), do artista Simon Hantai (1922-2008). Os indícios podem sempre emergir destes modos de habitar as contradições humanas como um olhar que recebemos de uma ideia, imagem, poesia, pintura, melodia ou de gestos aparentemente insignificantes. Este novo modo de percecionar o visível do invisível – que uma certa fenomenologia torna possível – contrasta com o modelo objetivistico (sujeito-objeto) para entrar no paradigma da reversibilidade afetante entre o ver e o ser visto, o tocar e o ser tocado, entre a passividade e a atividade dos atos relacionais da existência. Este estilo indicial exige travessia e hospitalidade sensível e não tanto um saber arqueológico ja constituído de traças longínquas de um outrora sem presenca.

Indícios resulta, portanto, de uma seleção de alguns artigos publicados no Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura e em alguns outros espaços de intervenção. Os textos Visão háptica como estética cinematográfica e Tournant teologal do cinema europeu? são publicados pela primeira vez e constituem uma visão mais teorética da experiencia fílmica que aqui se lhes segue. Para garantir uma maior coerência e unidade temática, procuramos proceder a uma revisão sintática e semântica dos textos por forma a evitar repetições, enriquecendo-os em termos de conteúdo. Cremos que a essa unidade entre os textos preside um horizonte de fundo, no limite entre o paradoxo ou a experiência da inexperiência do que e como se manifesta a encarnação/incorporação do Logos que regenera o rumor temporal do nosso renascimento eternal.

Para uma melhor inteligibilidade das intuições aqui simplesmente acenadas, procuramos apresentar estes indícios sob três estilos ou modos de manifestação. Na primeira parte, esses vestígios aparecem em modo de Impressões. Uma certa demoração nesta parte poderá servir de pórtico ao conjunto da proposta, sem beliscar uma possível leitura independente das partes. Num segundo momento, mergulhamos em Visões onde o olhar do cinema é omnipresente. No terceiro e ultimo momento, apresentamos as Reinscrições desses indícios a partir da literatura, da pintura e da imaginação vivente! Esta estrutura fenomenológica da existencialidade crente não é nem realista nem simplesmente ideal, mas contingencial (con-tingere) e vivencial. Sem querer perder a plausibilidade reflexiva da proposta, referenciaremos sempre que oportuno no corpo do texto as fontes com as quais procuramos elaborar este breve map road da transcrição vivente do cristianismo no contexto da cultura contemporânea.

O conjunto de indícios aqui acolhidos resulta da experiência vivida corpo-a-corpo com alguns dos atores contemporâneos. Uma habitação não sem bastante desconsolação e intermitência que se instaura neste combate afetivo. A intenção deste breve opúsculo não e senão tentar um entrelaçamento constitutivo entre o dispositivo teóloga e o dispositivo antropológico-fenomenológico e apelar a um olhar simpático para com o ambiente cultural enquanto lugar de uma disposição fundamental de aquiescência aos indícios de transcendência e da encarnação do Logos afetivo. Atender ao desvelamento sempre parcial de um evento (som, ideia, figura, imagem) é tornar-se disponível para o recolhimento paciente enquanto e na medida em que se dá a ver no entrelaçamento com o movimento percetivo e tocante do nosso corpo.

Em suma, Indícios e, ainda, um fragmento disperso, talvez errante ou primaveril, a espera de uma outra maturação. Muitas das referências e conceitos aqui expostos mereceriam uma outra problematização, mas isso fugiria ao nosso intento primordial, que é o de acolher/escutar o evento da criação em sua automanifestação de sentido. Diante da crise de leitura e do questionamento filosófico do homem contemporâneo, talvez seja original gerar comunidades afetivas em torno da semântica das ideias e das artes entrelaçadas possivelmente com o silêncio litúrgico das escrituras sacras. Se “é de nós que nos fala a Palavra das Escrituras, deste vivente que cada um de nós é” (Michel Henry), não poderá a prática comunitária desse entrelaçamento hermenêutico ser plausível?

Seja pelo questionamento inebriado de quem procurou expressar-se e interpretar-se nesses indícios vividos em situação crente, seja pela abertura contingencial ao evento originário que nos chega como dom, resta-nos apelar à benevolência e ao discernimento inteligente do leitor que, porventura, ouse abrir as paginas deste breve ensaio indicial e nele decida morar criticamente durante algum tempo! Permanece sempre a esperança de que o leitor possa vir a aceder e a habitar as diversas fontes e estilos artísticos aqui evocados e, a partir delas ou de outras, projetar um possível itinerário crente-existencial. E deles talvez emerjam imaginativamente novos e antigos indícios, ou como nos interpela Peter L. Berger: “Se, nos nossos dias, os indícios de transcendência não são mais do que rumores, nada nos impede de nos colocar à escuta destes rumores – ao ponto de remontar a sua fonte”.

Em jeito de um pensar questionante e de uma possível linha interpretativa de quanto aqui propomos, na feliz expressão do literário Manuel Frias Martins, com que cunhou o seu belíssimo ensaio A Espiritualidade Clandestina de José Saramago, ousaríamos dizer que todos estes indícios são índice de uma “espiritualidade clandestina […] e do seu olhar sobre a existência humana”. Nesta “espiritualidade clandestina”, não dogmático-institucional, reside uma preocupação pela contingência humana e da sua possível salvação (desejo de uma vida reconciliada) ou perdição (divisão e exasperação). Ela suscita a questão, ainda que aqui por nós culturalmente glosada, solevada por Karl Rahner, de saber se não estaremos perante um “cristianismo anónimo”, “implícito”, do humano habitado por uma graça que excedendo-0, sobriamente presente na sensibilidade artística contemporânea e na nossa contingências existencialidade. Mas, por ora, se estes indícios se revelarem e assumirem como um ponto de fuga aos lugares-comuns da imaginação cultural e da credulidade religiosa, eles terão cumprido pelo menos a sua intenção interrogativa.

Atendendo que as ideias, os pensamentos ou as imagens advêm sempre de confluências e influencias múltiplas, consonantes ou dissonantes que elas sejam, não poderíamos deixar de expressar aqui um sentido reconhecimento ao escritor e amigo José Tolentino Mendonça, que pacientemente incentivou e possibilitou a publicação deste pequeno ensaio; ao professor Manuel Moreira da Costa Santos pela sua atenta releitura deste ensaio e pela sua transmissão vivente e culta de um saber teologal original e de amplo respiro dialogal; à professora Maria Raquel Cortez pela sua atenção sábia ao advérbio gramatical. Por fim, last but not least, àqueles e àquelas, que, no silêncio notívago da sua recriação, nos revelam indícios da presença de uma ausência e são um grito kenótico contra a desumana barbárie sempre pronta a desvelar-se na espacialidade diurna da nossa breve existência.

 

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Publicado em 20.04.2016

 

Título: Indícios - À escuta dos traços de Deus
Autor: João Paulo Costa
Editora: Universidade Católica Editora
Páginas: 192
Preço: 17,70 €
ISBN: 978-972-540-486-7

 

 
Imagem Capa | D.R.
No respeitante à nossa comum humanidade, ao mistério do homem e das suas contradições no corpo a corpo com a interpelante “presença e ação de Deus no mundo” (Merleau-Ponty), a interlocução entre as diversas linguagens não só e possível como desejável. Esta postura dialógica possível deve questionar toda a “tradição filosófica (e teo-lógica) que pensou sempre mais por distinções e por oposições que por reciprocidade”
A habitação cultural é um ato de humanização que carnaliza horizontes novos de sentido impedindo a redução do humano à bestialidade de ser um somatório de atos vitais e a passividade evasiva da tecnocracia atual
Neste corpo de carne que somos reside possivelmente a tematização de toda a existência – criação, encarnação, salvação, mal, justiça, desejo, pecado, razão, afeto, ódio, amor, vida e morte. O Logos (Verbum) é o mais denso e incontornável paradoxo, não abordável com simplificações morais ou logicismos imediatos. Na figura do paradoxo, profundamente enraizado nas Escrituras sacras, reside a possibilidade do “encontro inesperado do diverso”
Jogar este jogo de entrelaçamento de linguagens a partir da forma paradoxal na aproximação a nossa carnalidade comum poderá abrir possibilidades de encontros novos e a superação de temores atuais que minam a confiança cultural e espiritual entre os humanos. Mas o cristianismo contemporâneo parece viver um certo impasse cultural que dificulta a aceitação da corporeidade como lugar de revelação do Logos
O retorno dos grandes temas do cristianismo, indicialmente presente no interior da cultura contemporânea, sob a forma de traços e de esquissos, manifesta-se ainda amplamente em diversos modos e lugares. Na habitação intercultural hospedal poderá estar a oportunidade para um dialogo critico, não virulento, no âmago da chamada “idade secular”
Seria um retrocesso histórico e cultural voltar a considerar que tudo o que não fale dogmaticamente de Deus é necessariamente contra Deus ou a reduzir toda a filosofia/arte/ciência nao-teísta a negação das verdades reveladas
A questão que se coloca é a de saber se poderemos dar crédito a esses indícios que aparecem e se eles são passíveis de qualquer ato de credulidade religiosa
Não será que o exercício da auscultação atenta aos indícios ou aos “rumores” da transcendência na cultura contemporânea é já sinal e presença de uma alteridade que nos alcança como evento inesperado?
Não será o humano contemporâneo ainda um “ouvinte da Palavra”, na feliz expressão do teólogo católico Karl Rahner? Se assim é, de que modo se manifestam ao “olho que escuta” (Paul Claudel) os rumores de Deus?
Estes esquissos não pretendem ser exegese nem descrição técnica dos textos ou obras aqui apresentadas. Eles pretendem somente escavar um sentido possível no entrelaçamento fenomenológico de linguagens aparentemente distantes
Este ato de entrelaçamento intencional corresponde à nossa convicção de que a experiência teologal vivida deverá percorrer caminhos novos de elaboração e de estilo sem perder a sua pertinência publica de questionamento a si mesma e aos outros
Este exercício em maturação de relacionar discursos de instancias de sentido diferenciáveis – como a arte, o cinema, a literatura, a fenomenologia, a estética ou a ciência – numa perspetiva indicial corresponde apenas à tentativa de inaugurar um estilo diverso (modo outro de transcrever o não-visto ou o impensado com grau de tra(d)ição que isso implica) de habitar a nossa contemporaneidade
Que outra linguagem se não a da inspiração artística e poética para manifestar esses índices e indícios de transcendência? Não deveria o ato de fé inspirar-se nas artes para discernir outros modos de dizer a relação entre a divindade e a humanidade, ou atender aos indícios da carnalidade das imagens várias enquanto “figuração no visível do invisível”?
A causa deste temor e tremor poderá ser o fechamento identitário tribal e a inépcia em frequentar/habitar outros lugares que não o próprio habitat natural religioso. A crise não é tanto de proposta quanto de receção de uma possibilidade nova
A auscultação da presença de indícios de transcendência na cultura contemporânea exigirá, portanto, uma hermenêutica da hospitalidade e da habitação fenomenal intercorpórea dos espaços e dos tempos onde essa presença eventualmente se manifesta
Atender ao desvelamento sempre parcial de um evento (som, ideia, figura, imagem) é tornar-se disponível para o recolhimento paciente enquanto e na medida em que se dá a ver no entrelaçamento com o movimento percetivo e tocante do nosso corpo
Permanece sempre a esperança de que o leitor possa vir a aceder e a habitar as diversas fontes e estilos artísticos aqui evocados e, a partir delas ou de outras, projetar um possível itinerário crente-existencial. E deles talvez emerjam imaginativamente novos e antigos indícios
Se estes indícios se revelarem e assumirem como um ponto de fuga aos lugares-comuns da imaginação cultural e da credulidade religiosa, eles terão cumprido pelo menos a sua intenção interrogativa
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