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Madre Teresa: Vem, sê a minha luz. Os escritos privados da "Santa de Calcutá"

No Livro do Êxodo há um passo enigmático, que deve, concerteza, o seu colorido ao universo nómada. Não se vislumbra o motivo da cena (a procura de explicação para a lei da circuncisão?), mas numa hospedaria do caminho, Deus também lutou com Moisés e «procurava fazê-lo morrer» (Ex 4,24-26: «E aconteceu que, no caminho, num acampamento, o Senhor veio ao encontro dele e tentou matá-lo».). Este trecho inclassificável é ainda mais perturbador se tivermos em conta o desenvolvimento da epopeia do Êxodo. Moisés há-de aí aparecer-nos como o amigo de Deus, aquele com quem Deus fala «face a face, como um homem fala com o outro» (Ex 33,11). E, a pedido de Moisés, Deus faz passar diante dele «toda a (Sua) beleza», deixando-se ver «pelas costas» (Ex 33, 18-23). Talvez aquele episódio incompreensível, em que Deus repentinamente tenta matar o seu escolhido, pretenda lançar uma reserva sobre a visão de Deus, aludindo à impossibilidade de controlar o divino. Deus não é manipulável, nem prisioneiro de nenhum tipo de conhecimento ou de sabedoria. Deus é Deus.

O discurso bíblico sobre Deus emerge deste escândalo. A Divindade é irrepresentável, transcendente, envolta em mistério. Os deuses dos povos vizinhos, esses têm um corpo, são imagens, nomes que se recitam. O Deus da Bíblia deixa em silêncio o pensamento dos homens, transumante, impronunciável como a luz, ilegível e desconhecido. As suas teofanias são acontecimentos desarmantes, porque Deus foge do declarado e do nítido e apresenta-se no imperceptível, naquilo que é apenas sussurrado, apenas entrevisto. Ao furacão, grande e impetuoso, ao terramoto ou à convulsão do fogo, Ele prefere «o murmúrio de uma brisa suave» (1Re 19,12) para se dar a conhecer.

Madre Teresa e João Paulo II
1986 - © CPP/Ciric

Em momentos determinantes da experiência religiosa, o sussurro é o de um corpo divino que se atravessa, obscuro e fulgurante, um corpo que se agarra ao nosso corpo, num combate nocturno, primitivo, por razões que trazemos gravadas no sangue, a mil braças de poderem ser contadas, razões que se tiram não com civilizadas disputas retóricas, mas num duelo, desprotegido, onde só vale o corpo. «Jacob tendo ficado só, alguém lutou com ele até ao romper da aurora. Vendo que não podia vencer Jacob, bateu-lhe na coxa, e a coxa de Jacob deslocou-se, quando lutava com ele.E disse-lhe: «Deixa-me partir, porque já rompe a aurora.»Jacob respondeu: «Não te deixarei partir enquanto não me abençoares.»
Perguntou-lhe então: «Qual é o teu nome?» Ao que ele respondeu: «Jacob.» E o outro continuou: «O teu nome não será mais Jacob, mas Israel; porque combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir.»Jacob interrogou-o, dizendo: «Peço-te que me digas o teu nome.» «Porque me perguntas o meu nome?» - respondeu ele. E então abençoou-o.Jacob chamou àquele lugar Penuel; «porque vi um ser divino, face a face, e conservei a vida» - disse ele. Osol principiara a levantar-se, quando Jacob deixou Penuel, coxeando por causa da sua coxa». No Livro do Génesis, quase nada se descreve desse corpo divino que enfrenta o patriarca Jacob, até o romper da aurora (Gn 32,23-33). A narrativa sublinha, antes, o carácter inesperado do acontecimento, a hesitação quanto ao vencedor decidida por golpe certeiro, o pedido que Jacob faz ao seu adversário para que o abençoe. Mas a irrupção do divino é tão forte, é de tal modo exposta, sem deixar nunca de ser obscura e impenetrável, que este texto se tornou referencial para a mística cristã.

Madre Teresa
15.12.1964 - © Ciric

O Cântico dos Cânticos, no seu sentido literal, narra o amor de uma mulher e de um homem. Desde o princípio, e essa é uma das justificações para a sua inclusão no estreito cânone bíblico, abundaram leituras alegóricas e espirituais deste livro que identificaram esta relação amante com a experiência crente. Em nenhum outro lugar da Bíblia o corpo é assim tomado como trama mesma do canto. Mas é um corpo – corpo, «adoecido pelo amor», como algures se diz, um corpo poderoso e vencido, suplicante, um corpo solar e nocturno, um corpo que o amor perde. O amor está sempre a ser proposto e reproposto: nunca é construção terminada. Há um ritmo incessante de movimentos, quase vertiginoso em alguns momentos. O amor faz dos enamorados nómadas, buscadores e mendigos. Todo o diálogo de amor é uma conversa entre mendigos: não entre gente que sabe, mas entre quem não sabe; não entre gente que tem, mas entre quem nada retém. Por isso a maior declaração de amor não é uma ordem, é ainda um pedido: «Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor» (Ct 8,6).

Madre Teresa
09.1970 - © Ciric

Este obscuro que só pelo obscuro está no coração do discurso teológico. De facto, há uma formulação teológica positiva, que se aplica a descrever os atributos revelados de Deus, as suas incisões na história. Esse conhecimento que tenta descrever as teofanias e caracterizá-las de um modo inteligível, é, porém, designado, pela tradição patrística, como “simbólico” e “apenas simbólico”, já que a realidade transcendente é  irredutível a qualquer sistema de pensamento. Gregório de Nissa avisa que «os conceitos criam ídolos» quando os tomamos para enunciar Deus. Segundo ele, «o mistério revela-se para lá de qualquer conhecimento, para lá mesmo de qualquer ignorância, nas trevas mais que luminosas do silêncio», aquelas que «só a admiração  apreende». É, assim, uma aproximação pelas trevas, pela noite mais escura, aquela que a chamada teologia apofática ou negativa sugere.    

Madre Teresa em oração
09.1991 - © Crozet/Ciric

Como método, a apofáse não toma a especulação: não comunica saberes, não elenca roteiros, não se repete. «Vai onde não possas/ vê onde não vês:/ escuta onde não ressoa/ e assim estarás onde Deus fala», segreda o místico Angelus Silesius. O único caminho é o da transformação, esse estado de mutação contínua, de despojamento progressivo, até que o orante reze já sem imagens, e o pensador pense a abandonar todo o pensado, e o bailarino dance sem um único gesto ou apenas no gesto da sua imobilidade. Essa transformação é descrita como um «permanecer escondido na sua própria epifania».  

Ou… «é isto que esconde tudo em mim», como escreve Teresa de Calcutá.

Nesta que é, porventura, uma das mais ardentes autobiografias da alma de todo o século XX, reencontramos, com grande escândalo ou desconcerto de quem do cristianismo faz apenas uma abordagem sociológica e histórica, o essencial da mística cristã.

Madre Teresa
© Tanwar/AFP

«É muito mais duro crer, que não crer», escreveu a romancista Flannery O’Connor, mas esta é uma proposição impopular tanto para o agnosticismo prático em que a cultura dominante mergulhou, como para um cristianismo domesticado por boas intenções e maneirismos, servido por uma estética viciosamente adocicada, que pretende dar respostas rápidas àquilo que obviamente não tem resposta. Como não amar a aspereza, a depuração, a essencialidade desarmada, a exposição, a miséria confessada desta assombrosa mulher que a Deus rezava «Não Te importes com o que eu sinto», e que de Deus dizia: «Quero amar a Deus por aquilo que Ele tira. Ele destruiu tudo em mim»?

«Há tanta contradição dentro da minha alma. Um desejo tão profundo de Deus, tão profundo que se torna doloroso, um sofrimento permanente… E contudo não ser querida por Deus, repelida, vazia, sem fé, sem amor, sem zelo. As almas não atraem. O Céu nada significa, parece-me um lugar vazio. O pensamento do Céu nada significa para mim e contudo esta ânsia torturante de Deus…». «Se alguma vez vier a ser Santa, serei com certeza uma santa da «escuridão».

Madre Teresa
© Lepri/AP

Aos Escritos Privados de Madre Teresa não interessa, portanto, reconhecer a insuficiência do dizer humano, mas afirmar a profundidade devastadora e indizível, o nomadismo infatigável, a Fé como afundamento numa realidade radicalmente outra. E é daí que brota o intransigente, desconcertante, ardente oximoro, que é a figura por excelência da Fé: a sede que dessedenta, a fome que sacia, o vazio que enche de plenitude, a escuridão que brilha. Quem tem ouvidos para escutar oiça. Quem tem coração para ler, leia.

JTM

Grémio Literário, 10.03.2008

13.03.2008

 

 

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Capa do livro

Vem, sê a minha luz
Os escritos privados da «Santa de Calcutá»

Autora
Beata Madre Teresa

Prefácio
Cardeal José Saraiva Martins

Editora
Alêtheia Editores

Páginas
394

Ano
2008

Preço
€ 17,10

ISBN
978-989-622-122-5

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