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A noite de Madre Teresa de Calcutá

Madre Teresa de Calcutá (1910-1997) viveu, afinal, cinco décadas com dúvidas de fé? A sua experiência da “noite espiritual”, que só alguns conheciam, foi trazida à luz do dia com a edição das suas cartas, em Setembro passado. Reunidas em “Vem, Sê a Minha Luz”, foram agora publicadas em Portugal (ed. Alêtheia).

Gonxha Agnes Bojaxhiu - como a futura Madre Teresa foi baptizada - não foi a única, no interior do cristianismo, a viver a fé sem sentir Deus como experiência sensível. Uma vivência que vem desde a Bíblia e atravessa os séculos. Há outros exemplos, de pessoas nada meigas, antes calejadas pela vida: um frade preso e torturado num convento; uma freira reformadora; um pas­tor da Igreja Luterana alemã fuzilado pelos nazis na prisão; uma judia que admirava o cristianismo e acabou morta em Auschwitz; e, agora, a “santa dos pobres” que ajudava os miseráveis a morrer depois de lhes retirar do corpo as larvas que os roíam.

A “escuridão” de que fala Madre Teresa começa após a decisão de fundar as Missionárias da Caridade, deixando o conforto da congregação do Loreto e do colégio onde leccionava. Logo em 1937, escreve ela ao padre Franjo Jambrekovic, seu antigo confessor em Skopje: “Não pense que a minha vida espiritual é um mar de rosas - que é flor que raramente encontro no meu caminho. Bem pelo contrário, o mais frequente é ter como companheira a ‘escuridão’.”

Essa experiência atravessa toda a sua vida. Foi mesmo “uma das suas companheiras mais regulares”, diz o padre Brian Kolodiejchuck em entrevista ao Ípsilon - membro dos Missionários da Caridade, Kolodiejchuck, 51 anos, canadiano com ascendência ucraniana, é o editor das cartas e postulador da causa de canonização de Madre Teresa.

“Bem vê, padre, a contradição que é a minha vida”, escreve Teresa em Abril de 1961 a Joseph Neuner, seu director espiritual, já depois de a “escuridão” se ter tornado permanente. “Desde 49 ou 50 esta terrível sensação de perda, esta solidão, esta ânsia permanente de Deus.” E quase o desespero o que descreve: “No meu coração não há fé nem amor nem confiança, Há tanta dor, a dor da ânsia. A dor de não ser querida.”

 

Os escolhidos de Deus

Deus, que não se mostra visível nem mesmo a quem crê, joga às escondidas com os seus? Vem na Bíblia uma experiência assim: “Até quando, Senhor? Esqueceste-me para sempre? Até quando me esconderás a tua face?”, pergunta o Salmo 13. Nas “Moradas do Castelo Interior”, Teresa d’Ávila (1515-1582), reformadora das carmelitas e referência de Teresa de Calcutá, diz que esta é uma prova dos escolhidos de Deus: “Muitas vezes Deus quer que seus escolhidos sintam essa miséria e aparta um pouco o seu favor.”

O despojamento preenche - ou esvazia - tudo em redor, o próprio Deus torna-se impotente. Dietrich Bonhoeffer, pastor protestante alemão, fuzilado numa prisão nazi de Berlim pela sua oposição a Hitler, escrevia em “Resistência e Submissão”: “O homem está chamado a sofrer com Deus no sofrimento que o mundo sem Deus inflige a Deus. Deve viver, pois, realmente, no mundo sem Deus e não lhe é licito escamotear, transfigurar religiosamente a sua carência de Deus.”

Deus torna-se desejo, ardência, sede insaciável. Em Teresa d’Ávila tal anseio chega à experiência do êxtase. Em Dostoïevski é causa de grande dor: “Sou filho da dúvida e da descrença... Que grande sofrimento supôs e supõe esta sede de acreditar, tanto mais forte quanto mais encontro em mim argumentos contrários... Foi através do cadinho da dúvida que passou o meu ‘hossana’.”

O irmão Roger (1915-2005), prior da comunidade ecuménica de monges de Taizé, foi muito influenciado pela avó, de fé protestante calvinista, que escrevia, após perder o pai, três irmãos e um filho com tuberculose:

“Não sou feito para lutar... Tenho dúvidas... Ajuda-me! Senhor, nós não somos capazes de perseverar na luta, mas isso é uma razão para não te abandonarmos, para permanecermos perto de ti.”

Já a romancista Flannery O’Connor escrevera que “é muito mais duro crer que não crer”. Uma proposição impopular - como disse o biblista Tolentino Mendonça na apresentação pública, em Lisboa, do livro com as cartas de Madre Teresa - “para o agnosticismo prático em que a cultura dominante mergulhou, como para um cristianismo domesticado por boas intenções e maneirismos, servido por uma estética viciosamente adocicada, que pretende dar respostas rápidas àquilo que obviamente não tem resposta”.

“Em momentos determinantes da experiência religiosa”, acrescentou Tolentino, “o sussurro é o de um corpo divino que se atravessa, obscuro e fulgurante, um corpo que se agarra ao nosso corpo, num combate nocturno, primitivo.”

Mas essa sede, essa luta, por vezes a própria dúvida, será já o próprio Deus? O autor anónimo de “A Nuvem do Não Saber”, um dos mais belos textos da mística medieval (século XIV), escrevia que só quando “a inteligência fracassa é que tem êxito, porque aquilo em que ela falha nada mais é do que Deus somente”.

 

Experiência de solidão

A noite espiritual, a intangibilidade de Dens, é, antes de mais, uma experiência de solidão. Teresa de Calcutá assim o viveu, durante cinco décadas, e mesmo algumas das pessoas mais pró­ximas ignoravam em absoluto o turbilhão que lhe atravessava o interior: “Mesmo as irmãs que viviam com ela diariamente não percebiam o que se passava”, diz-nos o padre Brian Kolodiejchuck. “Um dia, em Calcutá, li-lhes algumas cartas e ficaram surpreendidas. Algumas choraram.”

Teresa d’Ávila já prevenira: “Muitas vezes, Senhor meu, considero que, se com alguma coisa se pode suportar o viver sem Vós, é na soledade.” Outro espanhol, o poeta e filósofo Miguel de Unamuno (1864-1936), exprimia-se assim, no poema “A fé e a noite”:

“Sonhei que acabava o sonho/ E acordei. Fazia escuro;/ Não via estrelas nem lua/ Estava sozinho no mundo!! Voltei para trás o olhar/ Perdi a fé por não ver;/ Ganhei-a ao olhar em frente/ Pois só se crê no futuro.”

O mesmo Unamuno descobre que, afinal, Deus está presente num lugar outro: “Está aqui/ Mais dentro de mim que eu mesmo,/ Sim, está aqui/ No divino abismo/ Em que se espelha a fugidia eternidade”, escrevia em “A invisível presença”.

Escreve o irmão Roger, de Taizé: “Pode acontecer, surpreendentemente, que cheguemos a dizer: Jesus ressuscitado estava em mim e eu não sentia nada da sua presença. Procurei-o muitas vezes noutros sítios. Enquanto fugia das fontes por ele depositadas no mais profundo do meu ser, podia ir longe muito longe, mas perdia-me em caminhos sem saída. Parecia impossível encontrar em Deus uma alegria.”

Mesmo escondido, Deus, afinal, revela-se, está lá. Tolentino Mendonça afirmava: “É, assim, uma aproximação pelas trevas, pela noite mais escura. Não se trata apenas de reconhecer a insuficiência do dizer humano, mas a profundidade indizível, o nomadismo infatigável, o afundamento numa realidade radicalmente outra.” Angelus Silesius (1624-1677), místico alemão, escrevia: “Vai onde não possas/ vê onde não vês:/ escuta onde nada ressoa/ e assim estarás onde Deus fala”.

A ausência de Deus torna-se presença na mais intima intimidade. Etty Hillesum foi uma das muitas mulheres judias que morreu em Auschwitz. No seu diário (que será publicado em breve em Portugal), descoberto há duas décadas como uma extraordinária revelação, escrevia assim, em 26 de Agosto de 1941: “Há em mim um poço muito profundo. E nesse poço está Deus. As vezes, consigo chegar a ele, mas o mais frequente é que as pedras e escombros obstruam o poço e Deus fique sepultado. Então é necessário voltar a trazê-lo à luz.” Esta preocupação de Etty, que morreu antes de completar 30 anos, iria ela expressá-la de outra maneira quase um ano depois, a 12 de Julho de 1942:

“Vou ajudar-te, meu Deus, a não te apagares em mim, mas não posso garantir-te nada adiantado. No entanto, há uma coisa que se me apresenta cada vez com maior claridade: não és tu quem pode ajudar-nos, mas somos nós quem podemos ajudar-te a ti e, ao fazê-lo, ajudar-nos a nós mesmos.”

A mesma experiência que, afinal, Madre Teresa foi fazendo. A par da escuridão, uma grande certeza de que o trabalho que escolhera para a sua vida era o lugar onde encontrava Deus. Numa carta de Junho de 1961, dizia que, apesar da “escuridão muito profunda” e da “dor muito grande”, fizera o propósito de manter “um caloroso ‘sim’ a Deus, um grande ‘sorriso’ para toda a gente”.

Brian Kolodiejchuk não tem dúvidas de que o que Teresa de Calcutá identificava como a maior pobreza contemporânea - não ser amado, não ser querido, não ser cuidado, sentir-se rejeitado - era também o que ela sentia na sua relação com Deus. E uma forma de “partilhar a pobreza daqueles a quem ajudava”. Com Jesus, ela nunca deixava de se sentir enamorada, tratando-o muitas vezes por esposo - na linha do que também fizera Teresa d’Ávila.

Tolentino Mendonça: “O amor está sempre a ser proposto e reproposto: nunca é construção terminada. Há um ritmo incessante de movimentos, quase vertiginoso em alguns momentos. O amor faz dos enamorados nómadas, buscadores e mendigos. Todo o diálogo de amor é uma conversa entre mendigos: não entre gente que sabe, mas entre quem não sabe; não entre gente que tem, mas entre quem nada retém.”

Sim, Madre Teresa queria ser santa, diz o padre Brian. “Não uma santa canonizada” no Vaticano, mas alguém em quem “as outras pessoas vissem Jesus”. Escreveu Madre Teresa em Março de 1962:

“Se alguma vez vier a ser santa, serei com certeza uma santa da ‘escuridão’.”

 

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António Marujo

in Público, 21.03.2008

26.03.2008

 

 

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