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Leitura: "Francisco vai conseguir? - O desafio da reforma da Igreja"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "Francisco vai conseguir? - O desafio da reforma da Igreja"

«Passaram mais de mil dias desde a eleição de Jorge Mario Bergoglio como Bispo de Roma. Desde então, este pontificado tem suscitado muitas interrogações. Uma das mais insistentes, talvez seja: «Francisco conseguirá?». É uma interrogação que ouvimos muitas vezes aflorar aos lábios de crentes e não crentes, todos eles interessados em compreender o desfecho dos desafios que o novo pontífice tem vindo a enfrentar.»

Este é o ponto de partida do livro "Francisco vai conseguir? - O desafio da reforma da Igreja", do italiano Rocco d'Ambrosio, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Pontifícia Gregoriana, em Roma, lecionando as disciplinas de "Filosofia política", ´"Ética pública", "Católicos e política" e "Democracia sustentável".

«O escrito que apresento aqui, baseado nos meus estudos, tenta fazer uma análise institucional da Igreja católica no pontificado de Bergoglio», escreve o autor na introdução à edição portuguesa, publicada este mês pela Paulinas Editora.

"Os 'partidos' do Papa", "Nada de novo: apenas o Vaticano II", "Compreender a Igreja: sem simplicismos nem ideologias", "O poder entre os muros do Vaticano", "O fedor da corrupção ou o cheiro das ovelhas" e "O peso dos escândalos e a paciência na reforma" são alguns dos capítulos deste volume, de que apresentamos um excerto.

 

A reforma e a perspetiva a partir de baixo
Rocco d'Ambrosio
In "Francisco vai conseguir? - O desafio da reforma da Igreja"

Francisco vai conseguir? Raniero La Valle também levanta esta questão, respondendo assim:

«O prognóstico será comprovado no futuro. Contudo, já hoje podemos tentar encontrar uma resposta para a pergunta: [Francisco] conseguirá? E a resposta é que o Papa, de certo modo, já conseguiu: com efeito, há coisas que depois de realizadas já não desaparecem, são dracmas, tesouros escondidos, que depois de encontrados nunca mais se perdem. Não só o mal, também o bem, se quebra um tabu, poderá sempre voltar a repetir-se. Ora, Francisco já quebrou vários tabus e, depois disso, as coisas nunca mais poderão ser como antes.»

A pergunta continua a ser difícil, quer creiamos, como La Valle, que Francisco, sob muitos aspetos, já conseguiu, quer consideremos que o processo de reforma ainda se encontra na sua fase inicial.

O fio condutor desta análise institucional tem estado ligado à afirmação segundo a qual as instituições resistem à inovação, como tem sido demonstrado e aprofundado por uma vasta literatura científica. Antes de mais, Mary Douglas explicou com toda a lucidez:

«As instituições mostram a patética megalomania do computador, cuja visão do mundo se identifica com o seu próprio programa.»

Em suma: aqueles que são responsáveis pela máquina institucional podem cair na armadilha de pensar que o seu programa é o melhor e o único do mundo e que, portanto, a máquina institucional só tem valor e poder se nunca mudar o programa, e, ainda mais, se for capaz de o impor sempre e em qualquer circunstância. Francisco quebrou este esquema, infringiu um tabu, como disse La Valle. (...)

O desafio, como em vários momentos e lugares da comunidade cristã, é o de introduzir ou de confirmar, nos casos em que ela já está presente, uma nova perspetiva na práxis eclesial: a perspetiva a partir de baixo. Nas suas cartas, redigidas na prisão, Dietrich Bonhoeffer escreve:

«Resta ainda uma experiência de excecional valor: ter aprendido, por fim, a olhar os grandes acontecimentos da história universal a partir de baixo, da perspetiva dos excluídos, dos suspeitos, dos maltratados, dos impotentes, dos oprimidos e dos desprezados, numa palavra, dos sofredores. Se nestes tempos a amargura e o rancor não nos corroeram o coração; se vemos com olhos novos as coisas grandes e pequenas, a felicidade e a infelicidade, a força e a debilidade; e se a nossa capacidade de ver a grandeza, a humanidade, o direito e a misericórdia se tornou mais clara, mais livre, mais incorruptível; ainda mais, se o sofrimento pessoal se tornou uma boa chave, um princípio fecundo capaz de tornar o mundo acessível através da contemplação e da ação: tudo isso é uma vantagem pessoal. Tudo reside em não transformar essa perspetiva a partir de baixo numa tomada de partido pelos eternos insatisfeitos, mas em responder às exigências da vida em todas as suas dimensões, e em aceitá-la na perspetiva de uma satisfação mais alta, cujo fundamento se encontra, verdadeiramente, para lá do baixo e do alto.»

Creio que grande parte do pensamento de Bergoglio se pode interpretar com as palavras de Bonhoeffer. Os gestos, as palavras, as intervenções e as decisões do papa Francisco conservam, no seu conjunto, uma perspetiva a partir de baixo. Tal perspetiva está no coração da reforma de Francisco: ou se entra nela, ou não se compreende o que ele tem vindo a realizar; ou a partilhamos com inteligência e com um saudável carácter crítico, ou nos opomos a ela, tornando vãos os esforços do Papa.

Contudo, é oportuno determo-nos um instante sobre o significado da perspetiva a partir de baixo de Jorge Mario Bergoglio. As biografias atestam um facto indiscutível: Bergoglio sempre foi assim. Enamorado dos pobres, com inteligência, paixão e empenho. Aquando da sua eleição, esse facto foi confirmado: o seu colega, cardeal Cláudio Hummes, disse-lhe, «Não te esqueças dos pobres!» E o Papa, comentando as palavras de Hummes, precisou: «Aquela palavra entrou aqui, os pobres, os pobres».

Entrou no seu coração, mas já lá estava. Agora tem de entrar em toda a práxis eclesial.

«A Igreja deve falar com verdade e também com o testemunho: com o testemunho da pobreza. Se um crente fala da pobreza ou dos sem-abrigo e leva uma vida de faraó: isso não se pode fazer. Esta é a primeira tentação (Francisco).

A perspetiva a partir de baixo de Bergoglio choca com aquelas realidades da Igreja católica, como em alguns casos na Europa e América do Norte, que possuem vários bens materiais e recursos financeiros, gozam de benefícios estatais de vários tipos, podem contar com bens móveis e imóveis de notável valor. Tudo isto, muitas vezes, faz com que a comunidade católica se assemelhe às diversas instituições que fazem do lucro o seu único ou principal objetivo. Muitas vozes proféticas, em diversos lugares, têm chamado a comunidade a fazer escolhas de pobreza e de autenticidade cristã. Recordemos uma em especial, a do padre Primo Mazzolari, que dizia:

«Se as pessoas nos vissem ganhar o pão como elas e um pouco mais honestamente do que elas, a religião abriria caminho sem muitas prédicas nem muitas organizações. Uma pobreza saudável é como o meu vinho: mata a sede e não embriaga.»

Temos dioceses, paróquias, ordens religiosas, instituições eclesiásticas muitas vezes «embriagadas» com o lucro a todo o custo, a mil quilómetros de distância dos modelos de pobreza. Dou um exemplo, dentre muitos, mas de importância estratégica. Muitas vezes nas estruturas do Vaticano, nas dioceses e nas ordens religiosas há ecónomos, responsáveis por nevrálgicos sectores financeiros e imobiliários, que conservam o seu cargo «sobrevivendo» a Papas e bispos; desse modo, comportam-se, em termos de estilo e de conteúdos éticos, como diversas autoridades económicas do mundo po lítico e financeiro.

Tudo isso não tem apenas valor em termos de boa administração e transparência, no interior da comunidade eclesial; também tem um peso significativo na relação entre estruturas católicas e instituições laicas. Neste campo, o convite do Vaticano II, feito há cinquenta anos, tem caído muitas vezes no vazio. Recordemo-lo:

«A própria Igreja serve-se das coisas temporais na medida em que a sua missão o requer. Todavia, ela não põe a sua esperança nos privilégios oferecidos pela autoridade civil. Pelo contrário, renunciará ao exercício de certos direitos legitimamente adquiridos sempre que constate que o seu uso poderá fazer duvidar da sinceridade do seu testemunho ou que novas circunstâncias exijam outras disposições» ("Gaudium et spes", 76).

Esta passagem é tão clara que não dá lugar a equívocos. Qualquer privilégio pedido e recebido deve ser avaliado em relação ao testemunho evangélico que a Igreja dá. Pode surpreender alguns que o Concílio convide até a recusar as ajudas legítimas, se isso puder suscitar dúvidas sobre a atuação eclesial. Na verdade, porém, isso não surpreende as inúmeras pessoas que, pela sua sensibilidade e experiência, creem que o anúncio do Evangelho não deve ser sacrificado a nada, ou antes, é o todo que deve ser oferecido para que o Evangelho seja anunciado e vivido. Não será esta a verdadeira lição de Francisco? Além disso, o seu ensinamento não será o mesmo de Paulo VI, de João Paulo II e de Bento XVI?

Para recuperar a perspetiva a partir de baixo, é inevitável que nos interroguemos sobre até que ponto a lógica do mercado, do lucro a todo o custo, afeta as nossas estruturas católicas. Estas nem sempre são inspiradas pelos critérios evangélicos do bem comum, da justiça, da paz e da defesa dos últimos; nem sempre têm relações proféticas com o poder político, talvez procurando até acordos preferenciais e tratamentos de favor e privilégios económicos. Em relação ao dinheiro (recursos internos, financiamentos públicos, apoios económicos para festas de padroeiros, congressos, bancos católicos, financeiras católicas, bens eclesiásticos) nem sempre se atua com o devido discernimento.

A perspetiva a partir de baixo também nos interpela em termos de sinais. Dever-se-á verificar, por exemplo, quantas dioceses, paróquias e estruturas católicas responderam, e em que termos, ao apelo de acolhimento dos migrantes presentes no próprio território. Recordemos as palavras do Papa:

«Portanto, ao aproximar-se o Jubileu da Misericórdia, dirijo um apelo às paróquias, às comunidades religiosas, aos mosteiros e aos santuários de toda a Europa a expressar o aspeto concreto do Evangelho e a acolher uma família de refugiados. Um gesto concreto em preparação para o Ano Santo da Misericórdia. Que cada paróquia, cada comunidade religiosa, cada mosteiro, cada santuário da Europa hospede uma família, a começar pela minha Diocese de Roma.»

Na sequência deste apelo, alguma coisa se tem feito, talvez ainda não muito, entre a perplexidade e a recusa a atender o convite do Papa.

A perspetiva a partir de baixo guia e sustenta a reforma de Francisco, mesmo que por vezes pareça um grande sonho. Mas um sonho útil, daqueles que inspiram constantemente à ação, com a sua força fecundante e fortificante. Como o sonho de Helder Câmara:

«Perdoai os sonhos – escrevia Helder Câmara numa das suas meditações noturnas durante o Vaticano II. – Tenho uma tal pureza de intenções, tanto amor à Igreja, um sonho tão grande de a ver na frente de combate na luta em prol dos humildes e dos pobres!»

Francisco vai conseguir? Só Deus sabe.

 

Publicado em 23.09.2016

 

Título: Francisco vai conseguir? - O desafio da reforma da Igreja
Autor: Rocco D’Ambrosio
Editora: Paulinas
Páginas: 104
Preço: 7,00 €
ISBN: 978-989-673-540-1

 

 
Imagem Capa | D.R.
«Resta ainda uma experiência de excecional valor: ter aprendido, por fim, a olhar os grandes acontecimentos da história universal a partir de baixo, da perspetiva dos excluídos, dos suspeitos, dos maltratados, dos impotentes, dos oprimidos e dos desprezados, numa palavra, dos sofredores»
. Os gestos, as palavras, as intervenções e as decisões do papa Francisco conservam, no seu conjunto, uma perspetiva a partir de baixo. Tal perspetiva está no coração da reforma de Francisco: ou se entra nela, ou não se compreende o que ele tem vindo a realizar; ou a partilhamos com inteligência e com um saudável carácter crítico, ou nos opomos a ela, tornando vãos os esforços do Papa
«Se as pessoas nos vissem ganhar o pão como elas e um pouco mais honestamente do que elas, a religião abriria caminho sem muitas prédicas nem muitas organizações. Uma pobreza saudável é como o meu vinho: mata a sede e não embriaga»
Temos dioceses, paróquias, ordens religiosas, instituições eclesiásticas muitas vezes «embriagadas» com o lucro a todo o custo, a mil quilómetros de distância dos modelos de pobreza
Qualquer privilégio pedido e recebido deve ser avaliado em relação ao testemunho evangélico que a Igreja dá. Pode surpreender alguns que o Concílio convide até a recusar as ajudas legítimas, se isso puder suscitar dúvidas sobre a atuação eclesial. Na verdade, porém, isso não surpreende as inúmeras pessoas que, pela sua sensibilidade e experiência, creem que o anúncio do Evangelho não deve ser sacrificado a nada
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