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Francis Scott Fitzgerald: «Luz verde»

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Francis Scott Fitzgerald: «Luz verde»

No fundo obscuro em que se apoia a narrativa de Francis Scott Fitzgerald, de quem se evoca esta segunda-feira, 21 de dezembro, o 75.º aniversário da morte, agitam-se fantasmas e obsessões - da "auri sacra fames" ["execrável fome de ouro", expressão de condenação da ambição desmedida], da memória de Virgílio, ao corrosivo vício da bebida. E a veia pessimista, sempre vibrante, conduz à derisão das grandes ambições e dos sonhos de glória. «Às vezes é mais difícil privar-se de uma dor do que de um prazer», escreve o autor norte-americano em "Tender is the night" ("Terna é a noite") (1934): uma expressão que compendia a sua mórbida tensão a abraçar a face hostil e atormentada da existência, em detrimento de um sereno abandono, ainda que estéril, aos seus aspetos solares.

Fitzgerald (n. 1896) pertencia à corrente literária da denominada "Lost generation" (que, entre outros, incluía Hemingway e Dos Passos), um grupo de escritores nascidos pelos fins de 1800, que se estabeleceu em França nos anos 20 do século seguinte: anos que passaram à história como os da idade do jazz, quando - como argutamente observou Fernanda Pivano - se manifestaram «as utopias mais otimistas e as desilusões mais cruéis». E esta fase é imortalizada pelo escritor no livro "Tales of the jazz age" ("Histórias da idade do jazz") (1922): as vozes, os gestos, os emblemas exteriores e efémeros daquele mundo de belos e horríveis surgem, nesta ópera, como reflexos de um espelho deformador, até serem desviados para uma esfera mágica e surreal.

Ao mesmo tempo Fitzgerald aguçava a lâmina da ironia, penetrando-a no coração de uma cultura, nas suas palavras, pedante e antiquada. Em 1920 compõe "This side of paradise" ("Este lado do paraíso"), romance que se desdobra - sobre o inquieto fundo do primeiro pós-guerra mundial - numa galeria de personagens excêntricas e bizarras. Eis então, em páginas de tons sarcásticos, a juventude americana ainda não desencantada, dedicada a sonhar, e em grande.

E a propósito de ironia, não por acaso, já no início de "This side of paradise"; precisamente na terceira linha, Fitzgerald lança a primeira de uma série de chicoteadas: o pai de um dos protagonistas do romance, Amory Blaine, tinha o hábito de «adormecer sobre a Enciclopédia Britânica». A erudição livresca era um dos objetivos polémicos privilegiados; de resto, a sua ironia tinha sido forjada no fogo da impiedosa mordacidade de Bernard Shar e Oscar Wilde, avidamente lidos.

Certo é que a glória póstuma de Fitzgerald alimenta-se principalmente da linfa que percorre a sua obra-prima, "The great Gatsby" ("O grande Gatsby") (1925), elogiado por T.S. Eliot como «o primeiro passo em frente feito pela narrativa americana após Henry James». Foi o fruto de um "labor limae" extenuante: nos ambientes literários de então sussurrava-se que com as páginas rejeitadas pela versão definitiva podia extrair-se outro romance.

Gatsby, com o seu amor por Daisy de efeitos lacerantes, acaba por elevar-se a herói romântico, chegando a sacrificar a vida ao seu sonho. Mas, em filigrana, o verdadeiro protagonista do romance é o narrador, Nick, o único verdadeiro amigo de Gatsby, à prova dos factos. Novo Horácio, caberá a ele transmitir a mensagem derivante da dramática vicissitude de Gatsby, cuja figura ecoa Hamlet, envolvido numa áspera solidão na sua moradia de Long Island, e destinado a ser traído por um mundo decaído, dominado pela brutalidade e pela corrupção.

É um mundo que não permitirá a Gatsby coroar o seu sonho, fazendo-se assim motivo de troça. Parecia sempre a ponto de o alcançar, «mas não sabia que o sonho já tinha ficado para trás. Todavia, nem tudo está perdido: no fim do túnel brilha aquela «luz verde», símbolo de amor, de glória, de vontade de viver, na qual Gatsby tinha investido todo o seu ser. E o pungente desejo fervoroso a aguentar aquela luz, diante de uma realidade cada vez mais hostil, permanece.

«Assim - escreve Fitzgerald na celebérrima conclusão - continuamos a remar, barcos contra a corrente, incessantemente impelidos para o passado».

 

Gabriele Nicolò, In "L'Osservatore Romano"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 20.12.2015 | Atualizado em 24.04.2023

 

 
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É um mundo que não permitirá a Gatsby coroar o seu sonho, fazendo-se assim motivo de troça. Parecia sempre a ponto de o alcançar, «mas não sabia que o sonho já tinha ficado para trás. Todavia, nem tudo está perdido: no fim do túnel brilha aquela «luz verde», símbolo de amor, de glória, de vontade de viver, na qual Gatsby tinha investido todo o seu ser
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