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Ética e globalização: Em memória de Xavier Pintado

Imagem Valentim Xavier Pintado | D.R.

Ética e globalização: Em memória de Xavier Pintado

Qual é (...) a relação entre a globalização e ética, ou, quais são os problemas éticos postos pela globalização? Não são poucos e, todavia, seríamos tentados a dizer, com Václav Havel, perante a fúria dos protestos de Praga contra essas duas faces ou expressões da globalização que são o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que a globalização é ética ou moralmente neutra, e que «os mesmos movimentos tanto podem conduzir a humanidade a horrores como a um futuro melhor». Por outras palavras, que a globalização se apresenta como um fenómeno ambivalente, com aspetos ou consequências muito positivas mas, ao mesmo tempo, também com incidências negativas.

É, de resto, aquilo que afirma o Papa Paulo VI na "Populorum progressio" ao referir que «qualquer crescimento é ambivalente. Embora necessário para permitir ao homem ser mais homem, torna-o, contudo, prisioneiro no momento em que se transforma no bem supremo que impede de ver mais além»

A globalização é um processo de abertura de mercados e de esbater de fronteiras, combinado com uma revolução de tecnologias. Um movimento que abre amplas perspetivas e potencialidades aos povos, mas que tem também custos e efeitos desfavoráveis para alguns, que é preciso enfrentar ou compensar e corrigir mediante políticas adequadas a nível nacional e mundial mediante ações de cooperação internacional e uma oferta mais ampla e adequada de bens públicos globais.

Em termos gerais pode afirmar-se, com base numa evidência factual indesmentível, que a globalização promove a eficiência e a inovação, cria riqueza ou prosperidade, conduzindo mesmo a uma maior igualdade em algumas sociedades e regiões do mundo.

Mas os ajustamentos que envolve nos padrões de produção, comércio e investimento, têm um custo e não são facilmente introduzidos por todos os povos ou sociedades. Donde a preocupação de que alguns grupos sociais, regiões ou países que não consigam acompanhar o processo e sejam deixados para trás ou marginalizados.

A evidência disponível mostra que nos países desenvolvidos o rendimento "per capita" triplicou no último meio século, o qual conheceu um período de liberalização de mercados e de movimentos de capitais e, ao mesmo tempo, de crescimento sem precedentes e que esse fator multiplicativo se aplica, com ligeira diferença, igualmente aos países em vias de desenvolvimento no seu conjunto. O que corresponde a dizer, a 4/5 da humanidade. Mas países houve também, nomeadamente na África ao Sul do Saara – com ligeiramente mais 1/10 da população mundial – que praticamente não participaram nessa melhoria. Assim, a disparidade de rendimentos "per capita" entre a 5ª parte mais rica da população mundial e a 5ª mais pobre, passou de 30 para 1 em 1960, para 74 para 1 em 1997, cavando-se fossos profundos de desigualdades entre países e regiões do globo. Tal parece ter sido devido a problemas culturais, a um meio natural desfavorável e sobretudo às suas instituições, nomeadamente, às guerras e conflitos étnicos e à forma como são governados esses povos.

O mesmo sucedeu entre regiões no seio de alguns países como a União Indiana e a China onde, não obstante as melhorias substanciais conseguidas para amplas massas das suas populações, se cavaram igualmente fossos profundos entre zonas ou regiões.

Parte destas diferenças entre países é devida às suas instituições e às políticas por eles prosseguidas.

Com efeito, não se vê como se pode assegurar o progresso económico (e não só) em países com governos incompetentes e corruptos, assolados pela guerra, onde o direito de propriedade não é respeitado nem a lei é observada. (...)

Pensa-se, assim, que a primeira e mais importante das tarefas e empreender para assegurar o desenvolvimento dos países mais pobres – e, também, a mais difícil – reside nas alterações que é necessário introduzir nesses mesmos países.

Seja como for, os efeitos negativos da globalização sobre alguns países e povos devem ser enfrentados, procurando minorá-los e compensá-los mediante políticas ou medidas apropriadas de cooperação por parte dos países mais avançados.

À cooperação multilateral é reconhecida como necessária pelo menos em duas frentes. A primeira respeita aos países menos desenvolvidos em risco de marginalização, pelo menos quando dispostos a introduzir ou adotar políticas que permitam tornar eficaz a ajuda recebida, muito particularmente os países mais pobres e altamente endividados.

A segunda respeita à neutralização dos efeitos secundários negativos da globalização sobre esses países, como os respeitantes à degradação ambiental, aos problemas de saúde (epidemias e outros) e às migrações e situações de conflito. Os países mais desenvolvidos e as organizações internacionais podem contribuir muito para a melhoria da situação ambiental e sanitária, nomeadamente através da promoção de investigação orientada para a problemática destes países nos domínios da saúde, da agricultura e do combate à desertificação.

Estes e outros problemas que se põem à escala mundial, mesmo quando não sejam novos ou necessariamente associados à globalização, reclamam o fortalecimento da chamada "Global Governance"e uma maior e mais eficiente oferta de “bens públicos globais”.

 

O alargamento do fosso das desigualdades

Um dos pecados, ou males, atribuídos à globalização é o do alargamento do fosso das desigualdades entre ricos e pobres, tanto entre países como dentro de um mesmo país.

Com o desenvolvimento o grau de desigualdade no mundo, ou diferença de rendimento "per capita" entre os países mais ricos e os mais pobres ou desfavorecidos, tem-se alargado.

De acordo com as estimativas do especialistas em história económica Angus Maddison a diferença entre o rendimento médio nos vinte países mais ricos do mundo e o dos países mais pobres era de 2 para 1 apenas em 1820, quando ainda se não tinham sentido os efeitos da Revolução Industrial; de 5 para 1 no início do Séc. XX; de 20 para 1 no início dos anos 60 e de mais de 40 para 1 atualmente.

Poderá, porém, esse alargamento atribuir-se à globalização? Ou é parte do próprio processo de desenvolvimento, que oferece possibilidades crescentes àqueles que nele participam, deixando para trás ou marginalizando aqueles que nele se não inserem?

Há fenómenos de convergência ou de países pobres com economias a crescer a taxas bastante mais elevadas que a dos países industrialmente avançados, como foi o caso do Japão e dos “tigres” do Sudeste Asiático no passado e da China, Índia, Singapura, Malásia e Tailândia, na Ásia e do México e Chile na América Latina (entre outros países) atualmente.

Parece, assim, hoje possível retirar, de situações de pobreza extrema, massas imensas de população mundial num período relativamente curto, como se prevê ou se espera suceda nas próximas duas décadas na China (300 milhões) e na Índia.

Dois estudos recentes – um do Banco Mundial e outro de Freedom House ou Heritage Foundation – mostram de forma clara que a globalização ou inserção na economia mundial com abertura ao exterior contribui para a redução da pobreza e não para o alargamento do fosso entre ricos e pobres. Com efeito, as economias menos desenvolvidas, com maior abertura ao exterior, registaram na última década taxas de crescimento sensivelmente superiores, tanto às dos países que se fecharam ao exterior como às dos países mais ricos.

Existem países também pobres marginalizados do processo de crescimento com economias estagnadas ou em retrocesso, com rendimentos médios inferiores aos de há uma década atrás (55 países, 40 dos quais na África ao Sul do Saara).

Ora, enquanto se verifica que a abertura ao exterior e a inserção na economia global é essencial ao crescimento, verifica-se igualmente que certo número de países se mostra incapaz de inserir-se nesse processo sem uma significativa ajuda externa.

De acordo com um estudo do Banco Mundial, verifica-se uma correlação positiva entre a abertura ao exterior e o crescimento num conjunto de países que representam 60% da população mundial, e uma correlação negativa nos restantes 40%.

Os países pobres são mais vulneráveis às variações dos preços relativos das exportações e têm maior dificuldade em ajustar-se às transformações em curso na economia mundial, tendo sido particularmente afetados pela queda dos preços das matérias-primas desde o início do século XX.

A chamada Nova Economia e as novas tecnologias são também responsáveis pelo alargamento do fosso entre ricos e pobres, dado que os últimos não têm praticamente beneficiado das mesmas. (...)

Para além da exigência ética de solidariedade humana, especialmente no que toca às situações de pobreza extrema e de erradicação de flagelos epidémicos, a marginalização de um número significativo de países do processo de desenvolvimento põe ao resto do mundo importantes ameaças, como a da difusão de doenças, de fortes pressões migratórias e de terrorismo. Mas confronta sobretudo esses países com situações dramáticas e sem esperança de delas poderem sair sem a ajuda do exterior. (...)

Ao mesmo tempo é confrangedor ver doenças como a malária, que podiam ser dominadas ou erradicadas com 1/10 do custo anual das mesmas, continuarem a grassar em vários países de África. E que não chega a um décimo das despesas anuais com investigação médica a que é consagrada a problemas que afetam 9/10 da população mundial.

A solução para estes problemas não é simples nem se encontra apenas no aumento da ajuda económica, que no ano findo atingiu o seu mínimo histórico. Mas não restam dúvidas de que se requer uma outra resposta do mundo desenvolvido, ou países ricos, reclamando-se uma ação coletiva devidamente programada da parte destes últimos.

Também se não justifica a manutenção por parte dos países industriais de todo um conjunto de restrições ainda existentes às importações provenientes dos países mais pobres, especialmente de produtos agrícolas e têxteis. E muitas dessas restrições são apoiadas e promovidas por grupos de pressão e manifestações antiglobalização, como as de Seatle, sob uma pretensa fundamentação ou motivação ética: a luta contra o trabalho infantil, os salários de miséria do Terceiro Mundo ou em condições que não respeitam as exigências ambientais.

São as imposições das chamadas cláusulas social e ambiental ou o “dumping social e ambiental” que são invocados para ocultar a defesa de interesses dos países ricos. Ou a pretensão de que a abertura às importações dos países pobres, de baixos salários, contribui para a baixa dos salários dos trabalhadores não qualificados nos países industriais – pretensão essa não confirmada nem pelos dados das organizações internacionais nem pela investigação efetuada em instituições independentes.

Assim, um estudo de Richard Freeman, de Harvard, conclui que quatro quintos do diferencial de salários entre os trabalhadores dos Estados Unidos e os mexicanos se encontram associadas a diferenças de qualificação da mão de obra e a diferenças entre as taxas de câmbio correntes e o poder de compra relativo das respetivas moedas.

De resto, esse diferencial tem ultimamente vindo a ser em parte colmatado nos Estados Unidos pela procura crescente de trabalho não qualificado e a redução do desemprego deste tipo de trabalhadores.

Por seu turno as importações dos países industrialmente avançados provenientes dos países menos desenvolvidos, não atingem normalmente mais que 3 a 8% do valor dos bens produzidos nos primeiros.

 

Conclusão

Não é a globalização e a adoção de novas tecnologias, com a abertura ao exterior, que tem tornado mais pobres os países pobres. Terá, sim, tornado mais ricos os países ricos. Mas há, felizmente, fatores de esperança. Entre eles, uma consciência mais aguda da natureza dos problemas que afligem os países mais pobres e o reconhecimento também crescente da exigência ética de dar à globalização uma face mais humana, fazendo que ela contribua para a erradicação das situações de pobreza extrema, como um dos principais, senão o principal desafio, que se põe ao Mundo neste novo século.

Mas não pondo termo à globalização!

Ao contrário, a integração económica mundial pode contribuir de forma decisiva para a redução da parte da população mundial que vive em condições de pobreza extrema.

Pode argumentar-se que esse objetivo poderia igualmente atingir-se mediante um processo de redistribuição de riqueza, uma vez que o montante de fundos requeridos para duplicar o rendimento per capita dos 1 200 milhões de seres humanos mais pobres do planeta corresponde apenas a 2% do rendimento anual das economias dos países avançados. Mas a experiência tem mostrado que uma parte substancial, senão a quase totalidade, da ajuda oficial ao desenvolvimento tem sido simplesmente desperdiçada, não tendo sido senão um efeito mínimo sobre o desenvolvimento dos países mais pobres.

Essa ajuda continua a ser necessária e terá mesmo de ser aumentada. Mas em condições diferentes das do passado. E, ao mesmo tempo, sem parar o processo de integração e de abertura ao exterior que está na base da globalização.

Essa abertura e a inserção dos povos e das economias no processo de integração mundial em curso constitui condição necessária, embora não suficiente, de prosperidade das nações.

O problema não está pois em suster o movimento de globalização em curso, mas sim em conseguir que os países pobres participem dos benefícios e oportunidades que o comércio mundial, o investimento direto estrangeiro e o acesso às novas tecnologias e saberes podem proporcionar.

Não restam dúvidas de que a comunidade internacional necessita de encontrar formas de conseguir que a globalização opere também em benefício dos mais pobres.

Como acentuou há pouco o Diretor Executivo do Fundo Monetário Internacional, num mundo cada vez mais interdependente a prosperidade dos povos não é sustentável se não for amplamente partilhada.

Ou, como lembrou o atual Pontífice, João Paulo II, na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz, a abertura dos mercados e o diálogo de culturas, no respeito mútuo e no reconhecimento dos valores universais que constituem o núcleo perene de todas as culturas, constituem um elemento essencial e um imperativo do progresso neste Novo Século.

Natural de Freixo de Espada à Cinta, Valentim Xavier Pintado  licenciou-se em Ciências Económicas e Financeiras e fez o doutoramento em Economia na Universidade de Edimburgo. Nos anos de 1970 foi secretário de Estado do Comércio do Governo presidido por Marcelo Caetano, tendo participado, igualmente, em várias organizações internacionais como a EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre) e a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico). Foi cofundador do partido político CDS, em 1974. Na carreira académica foi professor catedrático e diretor da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa, da qual foi vice-reitor. Morreu a 29 de setembro de 2016, aos 91 anos.

 

Xavier Pintado
In "Gestão e Desenvolvimento", 2002
Publicado em 29.09.2016 | Atualizado em 25.04.2023

 

 
Imagem Valentim Xavier Pintado | D.R.
Os efeitos negativos da globalização sobre alguns países e povos devem ser enfrentados, procurando minorá-los e compensá-los mediante políticas ou medidas apropriadas de cooperação por parte dos países mais avançados
De acordo com as estimativas do especialistas em história económica Angus Maddison a diferença entre o rendimento médio nos vinte países mais ricos do mundo e o dos países mais pobres era de 2 para 1 apenas em 1820, quando ainda se não tinham sentido os efeitos da Revolução Industrial; de 5 para 1 no início do Séc. XX; de 20 para 1 no início dos anos 60 e de mais de 40 para 1 atualmente
Parece, assim, hoje possível retirar, de situações de pobreza extrema, massas imensas de população mundial num período relativamente curto, como se prevê ou se espera suceda nas próximas duas décadas na China (300 milhões) e na Índia
Enquanto se verifica que a abertura ao exterior e a inserção na economia global é essencial ao crescimento, verifica-se igualmente que certo número de países se mostra incapaz de inserir-se nesse processo sem uma significativa ajuda externa
Para além da exigência ética de solidariedade humana, especialmente no que toca às situações de pobreza extrema e de erradicação de flagelos epidémicos, a marginalização de um número significativo de países do processo de desenvolvimento põe ao resto do mundo importantes ameaças
É confrangedor ver doenças como a malária, que podiam ser dominadas ou erradicadas com 1/10 do custo anual das mesmas, continuarem a grassar em vários países de África. E que não chega a um décimo das despesas anuais com investigação médica a que é consagrada a problemas que afetam 9/10 da população mundial
São as imposições das chamadas cláusulas social e ambiental ou o “dumping social e ambiental” que são invocados para ocultar a defesa de interesses dos países ricos. Ou a pretensão de que a abertura às importações dos países pobres, de baixos salários, contribui para a baixa dos salários dos trabalhadores não qualificados nos países industriais – pretensão essa não confirmada
Não é a globalização e a adoção de novas tecnologias, com a abertura ao exterior, que tem tornado mais pobres os países pobres. Terá, sim, tornado mais ricos os países ricos. Mas há, felizmente, fatores de esperança. Entre eles, uma consciência mais aguda da natureza dos problemas que afligem os países mais pobres e o reconhecimento também crescente da exigência ética de dar à globalização uma face mais humana
O problema não está pois em suster o movimento de globalização em curso, mas sim em conseguir que os países pobres participem dos benefícios e oportunidades que o comércio mundial, o investimento direto estrangeiro e o acesso às novas tecnologias e saberes podem proporcionar
Como lembrou o atual Pontífice, João Paulo II, na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz, a abertura dos mercados e o diálogo de culturas, no respeito mútuo e no reconhecimento dos valores universais que constituem o núcleo perene de todas as culturas, constituem um elemento essencial e um imperativo do progresso neste Novo Século
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