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Leitura: "Diário de um pároco de aldeia"

Leitura: "Diário de um pároco de aldeia"

Imagem Capa | D.R.

«E eu que esperava ver este diário ajudar-me a fixar o meu pensamento, que se me escapa sempre nos raros momentos em que posso refletir um bocado. Na minha ideia, esperava que ele fosse uma conversa entre Nosso Senhor e eu, um prolongamento da oração, uma forma de suplantar as dificuldades da oração, que ainda me parecem muitas vezes insuperáveis, por causa, talvez, das minhas dolorosas cólicas de estômago. E eis senão quando verifico que Ele me descobre o lugar enorme, desmesurado, que ocupam na minha pobre vida estas mil preocupações quotidianas de que eu por vezes me julgava liberto. Bem sei que Nosso Senhor compartilha dos nossos sofrimentos, por mais fúteis que sejam, e que nada despreza. Mas por que razão hei de inscrever no papel o que, pelo contrário, devia esforçar-me por ir esquecendo? O pior é que encontro nestas confidências uma doçura tão grande que isso, só por si, devia bastar para me pôr de sobreaviso. Enquanto vou garatujando, à luz do meu candeeiro, estas páginas que ninguém chegará a ler, tenho a sensação de ter a meu lado uma presença invisível, que não é por certo a de Deus – mas, antes, a de um amigo feito à minha própria imagem, embora distinto de mim, de uma outra essência... Ontem à noite esta presença tornou-se-me de repente tão sensível que me surpreendi a inclinar a cabeça para não sei que interlocutor imaginário, com um súbito desejo de chorar que me envergonhou. O melhor, de resto, é levar a experiência até o fim – quero dizer, mantê-la, pelo menos, durante algumas semanas. Farei o possível até por escrever sem crivo tudo o que me vier à cabeça (acontece-me ainda hesitar na escolha de um epíteto, de me corrigir). Depois encafuarei toda esta papelada no fundo de uma gaveta e relê-la-ei um pouco mais tarde, com todo o sossego.»

É com estas palavras que termina o primeiro capítulo da obra «mais emblemática de Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia, na qual verte o seu arguto espírito de perscrutador dos âmagos da alma, nos domínios da mística e das misteriosas dimensões em que atua a Graça na natureza. Neste palco, a fraqueza, a humildade, o sofrimento, o sentido de serviço são as eficazes armas no combate infindável contra a adversidade diabólica».

A Paulinas Editora volta a propor aos leitores lusófonos a possibilidade de (re)descobrirem uma obra que, como escreve João Gaspar Gomes no prefácio, se insere na «linhagem dos mais notáveis romances católicos do nosso tempo, aquela em que François Mauriac, Julien Green e Graham Greene, para não citar senão três dos seus maiores romancistas, ocupam lugares de primeira grandeza».



Desde que o romance adquiriu foros de testemunho humano e o romancista ganhou os louros que outrora coroaram a fronte dos poetas épicos, desde que na literatura de ficção se contam os nomes de Tolstoi e Balzac, Dostoievski e George Elliot, Proust e Thomas Mann, não era de crer que a pauta de um romance apologético ou de tenções virtuosas viesse a poder concorrer com as obras-primas que saíram da pena dos mestres do romance universal a partir dos meados do século XIX



Prefácio
João Gaspar Gomes
In "Diário de um pároco de aldeia"

No panorama do romance católico, o Diário de um Pároco de Aldeia ocupa, sem dúvida, um lugar inconfundível. Publicado em 1936, quando Georges Bernanos já tinha conquistado a notoriedade com três romances notáveis, Sous le Soleil de Satan, L’Imposture e La Joie, foi este último que adquiriu em breve a categoria de obra-prima, embora a sua técnica o singularize, ao mesmo tempo, adentro dos cânones do romance universal e do romance francês em particular. Em muitas das suas páginas é este livro ardente, um verdadeiro diário, pois que um romance sob a forma de diário não tem obrigação de se deixar ser tão veementemente pessoal e soliloquial como este realmente se nos apresenta, sempre que a vida interior da sua personagem central, o pároco de aldeia autor do Diário transborda das margens por onde deve correr regularmente o rio da ficção e inunda toda a campina, transformando a paisagem da obra num cântico lírico de ressonâncias místicas que nos faz pensar na literatura religiosa espanhola e nas origens castelhanas da família de Georges Bernanos.

Nada mais diferente das obras piedosas e de catequese, que abundam na literatura católica portuguesa, que este Diário de um Pároco de Aldeia. À primeira vista tem-se mesmo a impressão de que se está diante de uma obra cristã, mas não católica. Não foi sem fundamento que Luc Estang chamou a Bernanos «protestataire». Há, de facto, uma interpretação tão ao pé da letra dos Evangelhos, no pensamento religioso do pároco que nos confia nesta obra o seu diário íntimo, que nos não surpreenderia vê-la no índex e o seu autor condenado pela ortodoxia. Entre nós, onde a obra de um Francisco Costa, extraordinariamente mais disciplinada e obediente à doutrina da Igreja todo-poderosa, já levanta protestos e excita o zelo do bien pensant, teria constituído um verdadeiro escândalo a publicação de um romance de tal modo violento nas suas diatribes contra os fariseus, os vendilhões do templo e esses a quem uma das personagens da obra chama os «deuses protetores da cidade moderna», os banqueiros, os «senhores opulentos do carvão, da hulha ou do aço», que dir-se-á, nas suas últimas consequências, um panfleto contra os ricos e os poderosos da Terra, no número dos quais se inscrevem, embora discretamente, os nomes dos próprios grandes da hierarquia católica.



É então que vemos surgir estes romancistas, no número dos quais se conta o autor do Diário de um Pároco de Aldeia, os quais não se negam a aceitar a verdade total do homem, antes, pelo contrário, aproveitando o melhor da doutrina, que visa, ao mesmo tempo, a salvação da alma e o reconhecimento da complexidade do coração humano posto em carne viva diante do exemplo único que é a vida, a paixão e a morte de Jesus Cristo, mergulham até aos abismos do bem e do mal



Pertence este livro à linhagem dos mais notáveis romances católicos do nosso tempo, aquela em que François Mauriac, Julien Green e Graham Greene, para não citar senão três dos seus maiores romancistas, ocupam lugares de primeira grandeza. Contando com o pecado, aceitando a parte que o mal desempenha na vida do homem e jogando com esse elemento, o único que pode provocar aquela margem de indeterminação e de drama sem a qual não há realmente literatura digna desse nome, eis que estes autores salvaram a literatura católica do beco sem saída em que ela estava metida desde a hora em que cessara a corrente mística que durante séculos permitira que o escritor católico, quer no sermão, quer na poesia, quer na apologética, quer no simples testemunho pessoal, eivado ou não de misticismo, ocupasse, na galeria dos escritores e na história das literaturas, o lugar que compete aos detentores de um estilo, de um pensamento ou de uma problemática invulgares.

Com a consagração do género literário que é, por assim dizer, o género por excelência da nossa época – a literatura de ficção –, viu-se o escritor católico na contingência de se condenar a uma espécie de literatura de ficção sem categoria adentro da esfera da obra de arte literária em que teria de rivalizar com os grandes analistas do coração humano e os grandes observadores dos dramas sociais. Desde que o romance adquiriu foros de testemunho humano e o romancista ganhou os louros que outrora coroaram a fronte dos poetas épicos, desde que na literatura de ficção se contam os nomes de Tolstoi e Balzac, Dostoievski e George Elliot, Proust e Thomas Mann, não era de crer que a pauta de um romance apologético ou de tenções virtuosas viesse a poder concorrer com as obras-primas que saíram da pena dos mestres do romance universal a partir dos meados do século XIX.



É dura a primeira batalha contra a ignorância, a calúnia, os despeitos e os interesses. É duríssimo lutar-se contra o fanatismo e o farisaísmo. E ainda é mais duro quebrar os hábitos de paroquianos habituados a lidar com sacerdotes burocratizados



E é então que vemos surgir estes romancistas, no número dos quais se conta o autor do Diário de um Pároco de Aldeia, os quais não se negam a aceitar a verdade total do homem, antes, pelo contrário, aproveitando o melhor da doutrina, que visa, ao mesmo tempo, a salvação da alma e o reconhecimento da complexidade do coração humano posto em carne viva diante do exemplo único que é a vida, a paixão e a morte de Jesus Cristo, mergulham até aos abismos do bem e do mal para daí trazerem, repassado de todos os suores de sangue a que o vício, a paixão, a luxúria, o orgulho, a hipocrisia, o despeito, a vaidade, a ambição e até a simples fraqueza condenam o homem, o sudário dos sofrimentos e das desgraças a que estão sujeitos os que dispõem daquela parte de liberdade que Deus lhes concedeu no dia em que o pecado original os precipitou do alto do paraíso terreal.

O Diário do nosso pároco é a história de uma vocação sacerdotal durante os primeiros passos do ministério. Mas o que torna patético e deslumbrante, ao mesmo tempo, o destino deste jovem sacerdote é, por um lado, a profunda humanidade da sua condição, e pelo outro, o estado precário da sua vida, rondada pela morte, tornando, assim mesmo, mais aguda e mais urgente a sua breve intervenção nos problemas alheios e nos próprios.



A lição mais interessante desta obra, arma de dois gumes, é aquela que se extrai do tema por assim dizer o leitmotif do Diário. Este livro é um cântico à miséria, cântico este que se, por um lado, é como um libelo contra os ricos e os poderosos deste mundo, pelo outro assume as proporções de uma ação de graças, pois os miseráveis, os deserdados, os mendigos, os sacrificados são nesta obra os escolhidos, os filhos prediletos de Deus



A figura do pároco, na sua melindrosa pureza e na sua extrema inocência de alma, desenha-se, através das trezentas e tal páginas das suas notas quotidianas, com a força e a altura da santidade. Não porque se nos apresente a fazer milagres, não porque se nos exiba na intransigência de uma doutrina facilmente aceite, não por que tudo seja claro no seu destino e de uma transparência de fé que não deixe dúvidas sobre a sua futura canonização. Pelo contrário. E nisso é que está a beleza e a transcendência do seu caso religioso. Inclusivamente, durante os passos mais decisivos do seu sacerdócio, este padre exemplar perde a fé, ou pelo menos julga tê-la perdido, perdendo, de facto, o espírito de oração. E se não fosse o amparo daquele a quem chama «mestre», o «senhor prior de Torcy», uma dessas figuras sacerdotais que salvam, graças à secular experiência do catolicismo, a própria fidelidade dos católicos no momento em que estes se defrontam com as transigências a que o sacerdócio obriga e a quem a própria doutrina se presta quando chega a hora de lidar com os homens, se não fosse a sagesse deste homem, teríamos visto, talvez, perder-se de todo a vocação do jovem padre.

É dura a primeira batalha contra a ignorância, a calúnia, os despeitos e os interesses. É duríssimo lutar-se contra o fanatismo e o farisaísmo. E ainda é mais duro quebrar os hábitos de paroquianos habituados a lidar com sacerdotes burocratizados. As relações do nosso pároco com o «senhor conde» são exemplificativas. E o caso de «conversão», digamos, da «senhora condessa» põe à prova a têmpera de um carácter que o jovem sacerdote obriga a reconhecer desviado do verdadeiro sentimento de amor.



À miséria e aos miseráveis fica a certeza da vida eterna. É este, aliás, o aspeto em que o Diário de um Pároco de Aldeia merece, com certeza, a benevolência dos ricos inteligentes. De outro modo só poderia vir a colher junto deles uma sementeira de ódios, tão duro, tão violento, tão implacável ele é para com a falsa majestade dos poderosos



Mas a lição mais interessante desta obra, arma de dois gumes, é aquela que se extrai do tema por assim dizer o leitmotif do Diário. Este livro é um cântico à miséria, cântico este que se, por um lado, é como um libelo contra os ricos e os poderosos deste mundo, pelo outro assume as proporções de uma ação de graças, pois os miseráveis, os deserdados, os mendigos, os sacrificados são nesta obra os escolhidos, os filhos prediletos de Deus. E é assim que a revolta latente na alma do pároco, filho de gente sem história, criado na indigência, e vítima, como todos os que como ele nas ceram na condição servil, se mitiga e desvanece, tornando-se, por assim dizer, numa sujeição abençoada de cada vez que ele é obrigado a reconhecer, ou através da palavra do «mestre» ou graças à sua própria contrição, que a pobreza é a condição do eleito de Deus. Uma vez que Jesus escolheu esse estado para vir a este mundo, a pobreza passou a ser uma condição por assim dizer santificada.

Profundamente cristão neste ponto de vista, também é católico na medida em que justifica a opulência que o catolicismo sanciona ao deixar para os que nada têm a consolação de Jesus ter dito ser «mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus». À miséria e aos miseráveis fica a certeza da vida eterna. É este, aliás, o aspeto em que o Diário de um Pároco de Aldeia merece, com certeza, a benevolência dos ricos inteligentes. De outro modo só poderia vir a colher junto deles uma sementeira de ódios, tão duro, tão violento, tão implacável ele é para com a falsa majestade dos poderosos. No fim de contas, o rico terá a Terra, ao pobre fica a certeza do Reino dos Céus.



 

Publicado em 05.01.2017

 

Título: Diário de um pároco de aldeia
Autor: Georges Bernanos
Editora: Paullinas
Páginas: 264
Preço: 15,99 €
ISBN: 978-989-673-549-4

 

 
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