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Leitura: “Das cinzas, a vida”

«A Quaresma não é um tempo de mortificações, mas de vivificações. Por isso, a ação de Jesus não é abater a árvore que não dá fruto, mas adubá-la para renovar o seu vigor (cf. Lc 13,8), porque Ele não veio quebrar a cana rachada ou apagar a mecha que ainda fumega (cf. Mt 12,20), mas para libertar no homem as energias de amor que estão adormecidas e fazer com que descubra formas inéditas, originais e criativas de perdão, de generosidade e de serviço que elevam a qualidade do seu amor, para pô-lo em sintonia com o do Vivente e, assim, experimentar a Páscoa não só como plenitude da vida do Ressuscitado, mas também da sua. Deste modo, assim como os camponeses no fim do inverno espalhavam nos campos as cinzas acumuladas no tempo frio, para revigorar a terra, assim também a palavra do Senhor é capaz de infundir novas energias nos homens.»

Estas palavras de Alberto Maggi foram escolhidas pelo padre italiano Paolo Scquizzato para o seu novo livro na Paulinas Editora, “Das cinzas, a vida – Um percurso de consciencialização”, no qual propõe um itinerário para o tempo de preparação para a Páscoa, que começa, precisamente, com o rito da imposição das cinzas.

«A Quaresma é um caminho e uma caminhada de amadurecimento; é uma deflagração de energia que nos remete para o interior, para atingirmos a plenitude de nós mesmos, e, por isso, leva-nos a sermos divinos. Porque a nossa vocação última é tornarmo-nos Deus, uma só coisa com Ele – os Padres da Igreja recordam-no-lo muitas vezes –, como o metal mergulhado no fogo que, por fim, já não se distingue dele. Caminho e caminhada que Jesus, o primogénito, realizou plenamente na sua vida e que, agora, espera que também cada um de nós o faça», assinala.

 

Um Pai bom – Uma leitura de Lc 15,11-32
In “Das cinzas, a vida – Um percurso de consciencialização”
Paolo Scquizzato

Salvação não é o que nós fazemos por Deus, pela observância da Lei, como faz o filho mais velho da parábola, mas o que Deus opera em nós. «Tornastes-vos uns estranhos para Cristo, vós os que pretendeis ser justificados pela Lei; abandonastes a graça» (Gl 5,4).

E, contudo, temos dificuldade em compreendê-lo: continuamos a crer que Deus é norma e preceito, e que, se transgredirmos, seremos punidos. No fundo, segundo o relato do Génesis, foi Satanás quem insinuou isto nos progenitores.

Jesus teve de morrer na cruz para nos demonstrar que não é assim, para nos convencer de que «a Lei interveio para aumentar a falta, mas, onde aumentou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5,20).

A parábola do «filho pródigo» foi escrita para nos converter da nossa presumida justiça. Ao terminar a sua laboriosa procura re ligiosa – o duro trabalho nos campos –, o filho mais velho é chamado a dar-se conta de que se perdeu e de que, finalmente, precisa de ser procurado. «Os últimos serão os primeiros» (Mt 20,16).

A salvação é reconhecermo-nos perdidos para sermos encontrados, amados e ajudados a renascer.



Para o pai, a única coisa essencial é o facto de o filho ter regressado e se abandone, perdendo-se, no seu abraço. Não importa o porquê, mas que o êxodo do retorno, da morte para a vida, tenha começado



Ambos os filhos da parábola têm dentro de si uma péssima imagem do seu pai. O mais novo considera-o opressor, sufocante, que tira a liberdade. O único meio de reavê-la será afastar-se dele. O mais velho acha-o um patrão a quem serviu bem, não transgredindo uma sequer das suas ordens. Mostrar-se-á valoroso, merecedor, por isso, do seu amor.

Ao ser-lhe pedida a herança – a essência, a própria vida do pai –, este dividi-la-á pelos dois filhos. Deus dá-se e dá tudo o que é, nem poderia fazer de outra forma. O facto que desconcerta é que Ele se dá precisamente a quem o trai e o renega. Aqui reside – e só aqui – a omnipotência de Deus.

Além disso, o amor deixa-nos livres, sempre. Até para nos perdermos.

O filho mais novo, agindo como se o próprio pai tivesse morrido, emigra para longe.

«Agora que Deus morreu, para onde caminhamos nós, o nosso caminhar não é agora um eterno precipitar? Ainda existe um alto e um baixo? Já não há nenhum acima, nenhum abaixo, e nós caímos de todas as partes, andamos vagueando como por um nada sem fim» (Friedrich Nietzsche, “A gaia ciência”).

Depois, chega a carestia e este homem vai – literalmente! – en gajar-se como cuidador de porcos, animais impuros para um hebreu e, na Bíblia, símbolo dos ídolos; como a sugerir que o afast amento de Deus significa cair na dependência dos ídolos. E os ídolos não saciam, porque o que nos realiza é a relação com um infinito, com um absoluto, dado que o nosso coração é constituído por um vazio que tem a própria forma de Deus.



O seu pai abafa imediatamente esta idiotia, apenas aflorada aos lábios do filho. A sua casa está cheia de filhos assalariados, que têm dele uma imagem perversa de pai e de patrão, de juiz e de polícia, todos preocupados em serem servos em vista de uma compensação



A determinada altura, este filho mais novo decide regressar a casa. Mas não por se ter arrependido. Só volta por causa das dentadas da fome, não por ter remorsos na consciência. Levanta-se e encaminha-se para o caminho do retorno, para um pai que ele considerava, embora temesse, segurança contra a fome. Mas este pai não estava interessado em saber destas razões do filho; na parábola, o pai não se preocupa tampouco em saber porque ele teria saído de casa, e muito menos porque regressa agora. O amor não suscita sentimentos de culpa.

Para o pai, a única coisa essencial é o facto de o filho ter regressado e se abandone, perdendo-se, no seu abraço. Não importa o porquê, mas que o êxodo do retorno, da morte para a vida, tenha começado.

Deus não é um filósofo: não procura os porquês de nos relacionarmos com Ele; o essencial é que iniciemos o regresso, é que moremos na sua casa.

Neste ponto, o texto é belíssimo: «Quando ainda estava longe, o pai viu-o…»

Como se tivesse pensado e esperado, há muito, por isso.

É verdade que o pai pensa mais no filho perdido do que nos que ficaram em casa, porque o amor sofre quando o amado está ausente. Estremeceram-lhe as entranhas, como as de uma mãe – é este o significado preciso de misericórdia –, correu ao seu encontro, «a lançar-se-lhe ao pescoço», e começa – literalmente do texto original – a beijá-lo repetidamente.



A ira é o último fruto que se gera, quando só permanece a justiça, abandonada pela misericórdia. Experiência análoga aconteceu a Jonas, diante da possível conversão dos habitantes de Nínive e do seu consequente perdão; sentiu uma ira lancinante invadir-lhe a alma: Não é justo!



O filho começa aqui o seu «ato de contrição», possivelmente aprendido quando criança na escola rabínica: «Pai, pequei conta o Céu e contra ti…»

Mas o seu pai abafa imediatamente esta idiotia, apenas aflorada aos lábios do filho. A sua casa está cheia de filhos assalariados, que têm dele uma imagem perversa de pai e de patrão, de juiz e de polícia, todos preocupados em serem servos em vista de uma compensação.

A casa de Deus foi transformada em «covil de ladrões» (Mc 11,17), frequentada por meros comerciantes, que se dedicam ao serviço do seu Deus, mas, no fundo, apenas desejosos de receber dele uma recompensa. A casa como um mercado. O pai, que agora tem finalmente a ocasião de mostrar, ao filho que regressou, qual é a verdadeira qualidade do seu amor, não pode deixar escapar esta ocasião.

Há uma mensagem desconcertante nesta parábola: o amor só pode ser derramado sobre quem se perde, sobre quem se suja, sobre quem errou. Como se nota noutras famosíssimas parábolas da misericórdia, a ovelha que recebe o abraço do pastor é somente a que se perdeu, e não as noventa e nove que ficaram no deserto (cf. Lc 15,4-7). A dona da casa fez festa com as amigas por causa da moeda perdida, e não pelas moedas guardadas no cofre (cf. Lc 15,8-10).

Só este filho gozará da festa do pai. Não o obediente. «Não vim chamar os justos, mas os pecadores. Não vim para os sãos, mas para os doentes» (Lc 5,32).

 

O pai chama um servo – a casa está cheia deles, quando só deveria haver filhos –, manda trazer – literalmente, no original – «a primeira veste», aquela que Adão vestiu no início da criação, por ser à imagem e semelhança de Deus. E, depois, uma vez mais o anel, as sandálias – sinal da liberdade reavida, dado que só os escravos andavam descalços – e um vitelo gordo.

Entretanto, o filho mais velho estava nos campos. Fora de metáfora: está empenhado no duro trabalho de observância das obrigações ditadas pela sua religião.

Se o homem religioso pensa salvar-se pelo cumprimento da Lei de Deus, dos seus mandamentos e preceitos, também se esforçará por se empenhar o mais possível por não se esquecer de nenhum. E há muito trabalho a fazer… Os preceitos fixados na tradição hebraica eram exatamente 613, dos quais 385 negativos: «Não faças, não façais...»; um para cada dia do ano. Uma vida. Os restantes 248 são positivos: «Deves, deveis fazer…», tantos quantos – assim se pensava, então – os ossos do homem. Em suma, se quiseres estar de pé, deves/deveis obedecer.

O triste observante aproxima-se de casa e ouve «a música e as danças»: «Meu pai enlouqueceu – deve ter pensado –, na minha casa não se fazem festas. A religião é trabalho duro, seriedade; é aguentar, melhorar-se; é suor e sangue.» Não há – nem é possível haver – lugar para a festa, para a alegria, para a dança como celebração e exaltação da vida.

Transformámos o Cristianismo numa religião tarjada de negro, onde muito é considerado obrigatório e o resto é proibido.

 

E, quando o bom homem vem a saber do que se trata, zanga-se. E recusa-se a entrar.

A ira é o último fruto que se gera, quando só permanece a justiça, abandonada pela misericórdia. Experiência análoga aconteceu a Jonas, diante da possível conversão dos habitantes de Nínive e do seu consequente perdão; sentiu uma ira lancinante invadir-lhe a alma: Não é justo! Não é justo que o pecador, o malvado possa salvar-se. Se isto deve acontecer, Deus não é justo (cf. Jn 4,1-4).

Mas o amor não se zanga (cf. 1Cor 13,5).

Na verdade, é nisto que consiste o único grande pecado do homem: não entrar no lugar da festa preparada para ele, porque o considera gratuito. É esse o pecado contra o Espírito Santo a que Jesus se refere (cf. Mc 3,29), o único não perdoável: não crer no amor.

Os religiosos, os observantes, os legalistas não podem aceitar que se possa entrar no Reino de Deus gratuitamente, isto é, de favor, grátis, sem mérito, embora Jesus tenha gastado uma vida para tentar convencê-los disso.

Uma bela e dramática parábola que nos é contada por Lucas (cf. 14,15-24) fala de um homem que quer dar um grande banquete, gratuito, festivo, sem restrição de qualidade alguma. Os convidados, porém, não aceitam porque todos têm muito que fazer. São os irmãos do filho mais velho, todos nos campos da vida religiosa a merecerem-se um lugar à mesa, através da observância e da obediência. No fim, estes ficaram de fora, autoexcluídos da festa. Por fim, a sala do banquete encheu-se com os pobres, os desgraçados e com os últimos, porque só eles puderam aceitar: como não tinham nada «que fazer» nem «a merecer», só puderam aceitar.

 

O pai saiu. O amor sai continuamente para que o amado possa entrar.

E, no entanto, o homem religioso não tem mais a dizer que: «Sirvo-te há muitos anos!» Depois de uma vida passada em casa com o pai, nada mais consegue além da mísera consciência de que é um servo, e a triste conquista de nunca ter transgredido.

O filho mais velho nunca se apercebeu do amor do pai porque estava absorvido em agradar-lhe com a observância. Ao dom preferiu o prémio. No máximo, o servo terá como herança as obras boas realizadas e o bem feito, o filho e o amigo («já não vos chamos servos», Jo 15,15) terão como herança a comunhão com o Pai. Era preciso fazer festa. É esta a «necessidade» do amor, tão presente no Evangelho!

O amor não tem outra necessidade, a sua essência é a de fazer festa, alegrar-se pelo amado, gozar da sua presença até morrer, para que ele possa finalmente ressurgir.


 

Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 07.10.2023

 

Título: Das cinzas, a vida
Autor: Paolo Scquizzato
Editora: Paulinas
Páginas: 88
Preço: 8,50 €
ISBN: 978-989-673-733-7

 

 
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