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Cristãos curvados sobre as feridas do mundo

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Cristãos curvados sobre as feridas do mundo

Hoje as pessoas, a sociedade e o próprio planeta sofrem de muitas feridas. A infidelidade e o falhanço das relações no seio da família infligem feridas a todos os seus membros, os quais, infelizmente, transmitem frequentemente as consequências às gerações seguintes. As culturas indígenas e as suas tradições estão feridas por outras culturas que pretendem ser-lhes superiores. O individualismo, com a sua insistência unilateral sobre os direitos da pessoa, fere muitas vezes a capacidade das pessoas de se ocuparem dos outros. O etnocentrismo, a xenofobia, o nacionalismo e a intolerância religiosa são atitudes sociais que ferem os mais pobres. O individualismo estigmatiza os estrangeiros, as minorias, os migrantes e os pobres; coloca-os contra a sociedade – ou discrimina-os – e acusa-os de serem a causa de todos os problemas.

Também os meios de comunicação e a tecnologia, apesar de terem fornecido um contributo positivo à sociedade, transformaram-se em instrumentos de violência, corrupção, exploração das crianças e das mulheres através do “sexo virtual”. A cultura prevalentemente materialista e consumista em que vivemos fere, além disso, os trabalhadores indefesos e o ambiente. Estão em curso conflitos de matriz étnica, política e religiosa, que continuam a gerar um número incomensurável de refugiados, de vítimas do tráfico de seres humanos e de novos escravos. Grupos internacionais de terroristas destroem vidas, sonhos, lugares de grande valor histórico e cultural e, definitivamente, o nosso maravilhoso mundo.

Sofremos também pelas feridas causadas às crianças, às mulheres e aos pobres em geral devido aos abusos perpetrados por algumas figuras eclesiais. As feridas recordam-nos que devem ser curadas. Mas como se faz? Como podemos colaborar na sua cura? Convido todos a elevar o olhar para o Senhor ressuscitado e a aprender dele. O Evangelho de João, entre as narrativas das aparições do Ressuscitado, compreende a de Tomé: «Mete aqui o teu dedo e olha as minhas mãos; estende a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente!». E responde Tomé: «Meu Senhor e meu Deus!». Procuremos imaginar com se terá sentido Tomé. Quando vê e toca as feridas do Senhor ressuscitado faz a suprema profissão de fé. Isto foi verdade para Tomé e é verdade também para a Igreja em cada tempo.

O teólogo Tomáš Halík diz que «Cristo aproxima-se dele [Tomé] e mostra-lhe as próprias feridas. Isto significa que a ressurreição não comporta a eliminação ou a desvalorização da cruz. As feridas continuam a ser feridas». As feridas de Cristo permanecem nas feridas do mundo. Halík acrescenta: «O nosso mundo está cheio de feridas. Estou convencido de que aqueles que fecham os olhos às feridas do nosso mundo não têm direito a dizer: “Meu Senhor e meu Deus!”». Segundo este autor, tocas as feridas de Cristo nas feridas da humanidade é condição de uma fé autêntica: «Não posso acreditar sem tocar as feridas, a dor do mundo. Porque todas as misérias deste mundo e da humanidade são feridas de Cristo. Não tenho o direito de confessar Deus se não sou capaz de tomar a sério a dor do meu próximo. A fé que fecha os olhos ao sofrimento das pessoas não é senão uma ilusão».

A fé, portanto, nasce e renasce continuamente apenas das feridas do Crucificado e do Ressuscitado, que vemos e que tocamos nas feridas da humanidade. Só uma fé ferida é credível, conclui Halík. Mostrando as feridas aos discípulos, Jesus quer manter viva neles a sua memória. As feridas de Jesus são a consequência da sua relação amorosa e rica de compaixão para com os pobres, os doentes, os publicanos, as prostitutas, os leprosos, as crianças, os marginalizados e os estrangeiros. Jesus foi crucificado por ter amado estas pessoas concretas, feridas pela sociedade e pela religião. Tendo partilhado as suas fragilidades e as suas feridas, chegou à perfeição enquanto irmão compreensivo, e não enquanto rígido juiz.

Há, depois, outro aspeto a sublinhar. Essas feridas recordam aos discípulos também a sua traição e abandono, quando, amedrontados, procuraram salvar-se a si próprios. Mas o que torna realmente a aparição de Jesus um mistério divino é o facto de Ele não se vingar dos seus discípulos. Ao contrário, oferece-lhes a paz, a reconciliação, a possibilidade de mudarem e de se converterem. As feridas de Jesus induzem os discípulos a acreditar que, mesmo se houve uma traição, é possível a reconciliação. As feridas do Senhor ressuscitado oferecem aos pecadores e aos traidores a justiça divina, não a condenação. Se queremos ser operadores de cura, devemos estar conscientes de que o nosso mundo contemporâneo se recusa tendencialmente a olhar e a tocar as feridas de Cristo nas feridas das pessoas.

Temos medo de olhar e tocar as feridas porque nos mete medo ver face a face a nossa mortalidade, a nossa fraqueza, a nossa realidade de pecadores, a nossa vulnerabilidade. Fascina-nos a ideia que, se temos muito dinheiro, um bom seguro, se estamos bem protegidos dentro das nossas casas, possuímos o último modelo de determinado automóvel e os mais recentes aparelhos eletrónicos e frequentamos um bom ginásio, podemos ser imortais. Custa-nos reconhecer que eliminamos as pessoas feridas das redondezas das nossas casas, fazemo-los desaparecer quanto temos visitas importantes e escondemos as suas barracas atrás de paredes decorados por agradáveis murais.

Em outubro de 2015 visitei o campo de refugiados de Idomeni, na Grécia, próximo da fronteira com a ex-república jugoslava da Macedónia. Tinham chegado até lá milhares de pessoas esfomeadas, exaustas e desesperadas, em fuga da Síria, do Iraque e do Afeganistão em guerra. Só tinham podido levar consigo alguma roupa e o seu tesouro mais precioso: a própria família. Ali podiam ver-se as feridas, podia sentir-se o seu cheiro, podia-se tocá-las. Naquele lugar havia muita angústia, mas havia também muita coragem, muita dignidade e um grande e válido empenho em manter viva a esperança.

Falei com uma mulher grega que supervisionava a distribuição de alimento, roupa e medicamentos. Era uma trabalhadora ativa no campo. Perguntei-lhe se fazia parte do seu trabalho. Respondeu-me que não, que se tinha oferecido como voluntária. Surpreso pelo facto de ter acrescentado um serviço ao trabalho normal, perguntei-lhe porquê. Respondeu-me: «Os meus antepassados também foram refugiados. Tenho a condição de refugiada no ADN. Estes refugiados são meus irmãos e minhas irmãs. Não os posso abandonar». São palavras de amor e de misericórdia que provêm da geração de pessoas feridas.

Quando, pouco depois, estava para sair daquele lugar, vi uma placa que indicava a saída: em grego estava escrito “Exodos”. Êxodo. Sim, Deus é o guia do seu povo. O Senhor ressuscitado está a conduzir os feridos pelo caminho que, do terror da morte, vai ao encontro da esperança de uma vida nova. Naquele campo estava o Senhor ressuscitado. Encontrei-o lá, entre os feridos.

 

Card. Luis Antonio Tagle
Arcebispo de Manila, Filipinas
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 26.07.2016 | Atualizado em 26.04.2023

 

 
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Sofremos também pelas feridas causadas às crianças, às mulheres e aos pobres em geral devido aos abusos perpetrados por algumas figuras eclesiais. As feridas recordam-nos que devem ser curadas. Mas como se faz? Como podemos colaborar na sua cura?
As feridas de Jesus são a consequência da sua relação amorosa e rica de compaixão para com os pobres, os doentes, os publicanos, as prostitutas, os leprosos, as crianças, os marginalizados e os estrangeiros. Jesus foi crucificado por ter amado estas pessoas concretas, feridas pela sociedade e pela religião
Fascina-nos a ideia que, se temos muito dinheiro, um bom seguro, se estamos bem protegidos dentro das nossas casas, possuímos o último modelo de determinado automóvel e os mais recentes aparelhos eletrónicos e frequentamos um bom ginásio, podemos ser imortais
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