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Umbrais

31.12.2008

«Isto»: Fernando Pessoa por João Villaret

 

 

30.12.2008

Dos Céus à terra desce a mor Beleza,
Une-se à nossa carne a falá-la nobre;
E sendo a humanidade dantes pobre,
Hoje subida fica à mor alteza.

Busca o Senhor mais rico a mor pobreza;
Que ao mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre,
E por elas o mesmo Céu despreza.

Como? Deus em pobreza à terra desce.
O que é mais pobre tanto lhe contenta,
Que este somente rico lhe parece.

Pobreza este Presépio representa;
Mas tanto por ser pobre já merece,
Que quanto mais o é, mais lhe contenta.

Luís Vaz de Camões (c. 1524-1580)

 

 

29.12.2008

Roberto Benigni lendo e comentando a Divina Comédia de Dante (fragmento sobre a natureza de Deus)

 

 

25.12.2008

Anúncio do nascimento de Jesus Cristo

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Sé de Lisboa, 25.12.2008, Missa da Noite
Voz: P. Pedro Lourenço
Captação de som: Rádio Renascença

 

Eu sou bendita esmola, ó pobrezinhos!
Meu coração é fonte que se alegra...
Vinde beber, ceguinhos;
matai a sede negra!

Sou velho tronco, a arder, homens gelados!
Ó trevas, vinde a mim, sou claro dia.
Sou perdão: vinde a mim, ó condenados!
Ó tristes, vinde a mim: sou a alegria!

Meu pranto é doce orvalho, murchas flores.
Sou a luz do luar, ó noite escura!
Sou bálsamo suave, ó negras dores!
Ó pedras, vinde a mim! Sou a ternura!

Árvores, vinde a mim: sou primavera!
E sou ninho de amor, aves do ar!
E sou antro de amor, ó bruta fera!
E sou praia de amor, ondas do mar!

Teixeira de Pascoaes (1877-1952)

 

 

24.12.2008

Cantata para os pequenos pastores de barro

É pelo ar que nos deslocamos
Temos um modo antigo que se distingue
Esse movimento faz brilhar o escuro

Trazemos o verde novo das paisagens dispostas
o verde-claro veemente
com igual intensidade
E nomes que se modificam à medida que os cantamos

As estradas estão penduradas com seus corredores
imensamente embrenhados
Segundo um princípio ardente os nossos vultos recortam-se
E todas as casas se erguem
fulgurantes

Os nossos dedos são cândidos
com brilhos impressos
e um tempo absorvido dos dois lados
Nos sinos, nos guizos, nas harpas
procuramos sem nenhuma restrição
o fogo e o gelo
a iluminação de um ramo dourado.

Atravessamos a noite com uma vontade irreprimível de cantar
Assinalamos, aqui e ali, inconcebíveis pontos luminosos
Há um instante em que as nossas vozes
se fundem e se destacam
reluzentes sobre a sua vida perpétua

Um Anjo mede essa evidência
como se medisse a própria infância
Quando pela primeira vez se ouvir
será como se o silêncio ressoasse

José Tolentino Mendonça

 

 

23.12.2008

Tu, que estás em tua casa no fundo do meu coração,
Ressoe a tua voz
No fundo do meu coração.

Tu, que estás em tua casa no fundo do meu coração
Quero ir para Ti
No fundo do meu coração.

Tu, que estás em tua casa no fundo do meu coração
Deixa aproximar-me de Ti
No fundo do meu coração.

Tu, que estás em tua casa no fundo do meu coração
Acolhe a minha oferenda
No fundo do meu coração.

Tu, que estás em tua casa no fundo do meu coração
Faz com que me perca em Ti
No fundo do meu coração.

Segundo um hino tâmul

 

 

22.12.2008

O cristianismo dá verdadeiramente ao homem toda a sua dimensão, que é mais do que a dimensão do homem. Chama-o a ser deus e chama-o em liberdade. É essa a última e suprema significação para o cristão da história progressiva. Porque é que Deus não criou a natureza e o homem num estado de perfeição imediato? Porquê a evolução? Porquê a marcha hesitante da história? O cristianismo responde: Deus é Pai, não é paternalista. Quis que a libertação do homem fosse o fruto do trabalho, do espírito e do sofrimento do homem, quis que ele conhecesse um dia o sabor, não duma esmola esmagadora entregue pelos céus, mas das suas esperanças, dos seus trabalhos, das suas provações e do seu amor.

Emmanuel Mounier (1905-1950)

 

 

18.12.2008

A Estrela

Eu caminhei na noite
E entre o silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava.

Grandes perigos na noite me apareceram:
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
Duma cidade a néon enfeirada.

A minha solidão me pareceu coroa.
Sinal de perfeição em minha fronte.
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era dum ferro
Tão pesado, que toda me dobrava.

Do frio das montanhas eu pensei:
«Minha pureza me cerca e me rodeia».
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu.

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram:
Pedi às pedras do monte que falassem
mas elas como pedras se calaram.
Sozinha me vi, delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava.

E eu caminhei na noite, minha sombra
De gestos desmedidos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins dos desertos caminhavam:
Então vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava
E assim me disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela».
Então soube que a estrela me seguia.

Era real e não imaginada.
Grandes e humanas miragens nos mostraram
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava.
E eu espantada vi que aquela estrela
Para cidade dos homens nos guiava.

E a estrela do céu parou em cima
duma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha o mesmo tom que a cinza
Longe do verde-azul da Natureza.

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água.
Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais negra e mais sem luz
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado.

Nesse lugar pensei: Quando deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens tão perto.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

 

 

17.12.2008

Carlos Paredes (1925-2004)

 

 

16.12.2008

Amar uma pedra, um cão, uma osga, uma barata.
Amar uma pessoa que não gosta de nós.
Amar uma pessoa de quem não gostamos.
O amor é mais difícil que a mecânica quântica.
Fernando Pessoa, num poema em que caridade rima
com electricidade, diz que não tem caridade.

Às vezes, aquilo a que chamamos amor não é amor:
- é exigir amor em troca
- é dar para que dês

Amar alguém é confiar nessa pessoa, não estar de pé atrás, acreditar nessa pessoa. Gostamos pouco uns dos outros, disse Tonino Guerra.
Querer amar e ser amado, dizia Jorge Luis Borges, é muito ambicioso, não é humilde.
Acho que devemos pedir só para amar.
É fácil amar quando a vida nos corre bem.
Quando a vida nos corre mal, insultamos o mundo e, às vezes, insultamos Deus. Acreditar então nas coisas mais queridas, mais pequeninas:
- as medalhinhas do nosso Baptismo, que entretanto foram roubadas, se perderam.
- a imagem de Nossa Senhora de Fátima comprada na loja dos 300.
- dois versos de uma oração de que esquecemos o resto.

Às vezes, a vida corre-nos muito bem e esquecemo-nos da compaixão. A compaixão é o amor. Só a compaixão salva. Só a compaixão é eterna.
O sofrimento nem sempre se vê. E o sucesso, como o desespero, pode cegar.

Às vezes, temos grandes amigos e não sabemos. A padeira do nosso bairro, o vizinho do nosso prédio. Anos e anos a dizer:”Bom-dia! Boa-tarde!, mais nada, e essas palavras bastaram.

O amor nem precisa de palavras. Mas as palavras sabem bem.

Adília Lopes

 

 

12.11.2008

Pouco importa que esteja preso o pássaro por um laço fraco ou forte. Ainda que seja fraco o laço, desde que se não quebre ficará o pássaro prisioneiro e sem poder voar. Assim se passa com a alma que se deixa prender a uma coisa insignificante.
Não consiste o amor em sentir grandes coisas, mas sim numa grande nudez e em muito padecer pelo Amado.

S. João da Cruz

 

 

11.12.2008

Manoel de Oliveira: 11.12.1908 » 11.12.2008

 

 

 

10.12.2008

Olivier Messiaen (1908-2008)

São Francisco de Assis (Quando Deus é maior do que o nosso coração)

 

 

 

09.12.2008

António Alçada Baptista (29.01.1927 - 07.12.2008)

 

 

 

05.12.2008

Devota como ramo
curvado pelos nevões
alegre como fogueira
nas colinas esquecidas,

sobre acutíssimas lâminas
em branca camisa de urtigas,
te ensinarei, minha alma,
este passo do adeus...

Cristina Campo (1923-1977)

 

 

04.12.2008

Amar alguém, ou seja, esperar desse alguém um não sei quê de indefinível e imprevisível; e, ao mesmo tempo, dar-lhe, dum modo qualquer, os meios para que ele possa corresponder ao que esperamos. Por mais paradoxal que possa parecer, esperar é já, de algum modo, dar; o inverso é igualmente verdadeiro: nada esperar é a nossa contribuição para a esterilidade daquele de quem já nada se espera, é a nossa maneira de o frustrar, retirando-lhe de antemão essa última possibilidade de inventar e criar. Tudo nos leva a crer que só se pode falar de esperança onde haja essa interacção entre aquele que dá e aquele que recebe, essa comutação que é a marca da verdadeira vida espiritual.

Gabriel Marcel (1889-1973)

 

 

03.12.2008

A linguagem religiosa é a linguagem da criatura reconhecendo que é a criatura, que Deus não é manipulável, e que eu dependo dEle para mover a minha mão.

Adélia Prado

 

 

02.12.2008

A fé que mais amo, diz Deus, é a esperança

A pequena esperança avança no meio das duas irmãs mais velhas e nem sequer se repara nela.
No caminho da salvação, no caminho carnal, no caminho áspero da salvação, no percurso interminável, no percurso, entre as duas irmãs a pequena esperança
Avança.
No meio das irmãs mais velhas!
A que é casada.
E a que é mãe.
E só se dá atenção, o povo cristão só dá atenção às duas irmãs mais velhas.
A primeira e a última.
Que acodem ao urgente.
Ao tempo de agora.
Ao momentâneo instante que passa.
O povo cristão só vê as duas irmãs mais velhas, não tem olhos senão para as duas irmãs mais velhas.
A que está à direita e a que está à esquerda.
E a bem dizer não vê a que está no meio.
A pequena, a que ainda anda na escola.
E que caminha.
Perdida nas saias das irmãs.
E facilmente crê que são as duas grandes que levam a pequena pela mão.
No meio.
Entre elas duas.
Para a fazerem percorrer esse caminho áspero da salvação.
Cegos que pelo contrário não vêem
Que é ela que no meio arrasta as irmãs mais velhas!
E que sem ela elas nada seriam.
Senão duas mulheres já idosas.
Duas mulheres de certa idade.
Amachucadas pela vida.

É ela, essa miúda, que tudo arrasta.
Porque a Fé só vê o que é.
E ela, ela vê o que será.
A Caridade só ama o que é.
E ela, ela ama o que será.

Charles Péguy (1873-1914)

 

 

27.11.2008

Luz do sol,
Que a folha traga e traduz
Em verde novo e folha
Em graça, em vida, em força, em luz…
Céu azul
Que vem até onde os pés
Tocam na terra
E a terra inspira e exala seus azuis…
Reza, reza o rio
Córrego para o rio,
O rio pro mar…
Reza a correnteza,
Roça a beira,
Doura a areia…
Marcha o homem sobre o chão
Leva no coração uma ferida acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão da infinita beleza
Finda por ferir, com a mão,
Essa delicadeza,
Coisa mais querida,
A glória da vida…

Caetano Veloso (1942)

 

 

26.11.2008

Capela de Mark Rothko (1903-1970). Música: Morton Feldman (1926-1987)

 

 

 

25.11.2008

Para chegares a saborear tudo, não tenhas gosto em nada.
Para chegares a possuir tudo, não queiras possuir nada de nada.
Para chegares a ser tudo, não queiras ser nada em nada.
Para chegares a saber tudo, não queiras saber nada de nada.
Para chegares ao que não saboreias, o caminho é não teres sabor.
Para chegares ao que não sabes, o caminho é não saberes.
para chegares ao que não possuis, o caminho é não possuíres.
Para chegares ao que não és, o caminho é não seres.

***

Quando reparas em algo, deixas de te entregar ao todo.
Porque para chegares de todo ao todo, tens que negar-te de todo em todo.
E quando o vieres a ter de todo, tens de tê-lo sem nada quereres.
Porque se queres ter algo, em tudo, não tens puro o teu tesouro em Deus.

S. João da Cruz (1542-1591)

 

 

21.11.2008

A noite nunca é completa

A noite nunca é completa.
Há sempre, eu juro-te hoje,
Eu juro-te sempre,
No fundo de uma lágrima uma janela aberta,
Uma janela iluminada.

Há sempre um sonho que desperta
Desejoso de se realizar como uma fome a satisfazer,
Um coração generoso,
Uma mão estendida,
Uma mão estendida… uma mão aberta,
Olhos atentos,
Uma vida, a vida a partilhar.

Paul Éluard

 

 

20.11.2008

Meu Deus, me dê a coragem

Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Recebe em teus braços o meu pecado de pensar.

Clarice Lispector (1920-1977)

 

 

19.11.2008

Maria Bethânia
Cântico Negro, José Régio (1901-1969)

 

 

18.11.2008

Serviço de abastecimento da palavra ao país

Vieram ter comigo dos lados do mar. Eram três, eram três mil. Vi que era pão que procuravam ou que não era pão que procuravam. Pus-me a distribuir por eles as minhas palavras: árvore, pássaro, mar, criança, rapariga, mulher. A cada palavra minha eu ia-me esvaziando. Era a vida, a minha vida que se me ia. Eles ficavam incendiados. Nunca tinham pensado que se pudesse comunicar assim coisas próprias. Vieram mais, muitos mais dos lados do mar. Disse-lhes: morte, deus. E caí redondo no chão. Naquele dia ficou instituído o serviço de abastecimento da palavra ao país.

Ruy Belo (1933-1978)

 

 

12.11.2008

Evangelho segundo Mateus (1964)
Pier Paolo Pasolini

 

 

 

07.11.2008

Balada de Outono

 

 

 

06.11.2008

Criaturas de Deus. Trazem na fronte
o esquecido sinal de criatura
e a pressa de irem oficiar por onde
o esquecimento oculta.
Contudo o ritmo lhes desnuda o porte.
É nelke que sofrem a incidência justa
que, esplendorosa, as move
por sua frágil lucidez de usura.
Mas, por ora, aparecem. Passam. Jovem
fica o vestígio que deixou na rua
a pressa de irem. E levou a ordem
de um movimento em que o sinal perdura.

Fernando Echevarria (n. 1929)

 

 

04.11.2008

Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O Sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa (1888-1935)
Poema dito por João Villaret (1913-1961)

 

 

02.11.2008

Elogio à Vida

 

Excerto de Ordet ("A Palavra"), 1955
Realizador: Carl Dreyer

 

 

01.11.2008

Ladainha dos Santos

Kyrie eleison. Christe eleison.
Kyrie eleison.
Jesus Cristo, ouvi-nos
Ouvi-nos no silêncio dos nossos corações
Ouvi-nos no Coração do Silêncio
Ouvi-nos a todos, que não temos voz
Jesus Cristo, atendei-nos
Atendei-nos, servos inúteis e nus
Atendei-nos e vede o nosso arrependimento
Atendei-nos, Senhor, e livrai-nos do medo
Pai Santo, tende piedade de nós
Tende piedade dos pobres sem palavras para exprimir a sua devoção em versos
Tende piedade dos poetas com palavras que não exprimem nada
Tende piedade e dai-nos palavras d'espanto
Filho, Redemptor do Mundo, tende piedade de nós
Tende piedade dos ricos, que não são pobres d'espírito
Tende piedade dos pobres, que não são ricos d'espírito
Tende piedade de nós e conduzi-nos à luz musical do Espírito Santo
Santa Maria, rogai por nós
Rogai por nós, com Vosso Olhar de Rosa Branca
Rogai por nós, com Vosso Rosto de Mãe Exausta
Rogai por nós, com Vossa Mantilha de Sombra
Santa Mãe de Deus, rogai por nós
Rogai por nós e dai-nos a Sombra da Vossa Mantilha
Rogai por nós e dai-nos a contemplar o Vosso Rosto
Rogai por nós e dai-nos uma Pétala do Vosso Olhar
Santa Virgem das Virgens, rogai por nós
Rogai por nós e ensinai-nos orações cheias de vertigens
Rogai por nós, oh Rosa Branca de Mil Pétalas.
Rogai por nós, com Vossas Lágrimas Acesas
S. Miguel, rogai por nós
Rogai por nós, Príncipe das Milícias do Senhor
Rogai por nós, Vencedor do Dragão no Apocalipse
Rogai por nós, Dominador do medo dum só golpe
S. Gabriel, rogai por nós
Rogai por nós, à Virgem de Nazareth: Avé, cheia de graça, o Senhor é convosco
Rogai por nós, Anunciador de Cristo
Rogai por nós, unidos a Vós na Avé-Maria
S. Rafael, rogai por nós
Rogai por nós, nosso Companheiro de Viagem
Rogai por nós, nosso Médico e Enfermeiro
Rogai por nós, nosso Amigo Inseparável
Santos Anjos e Arcanjos, rogai por nós
Rogai por nós, com Vossas Asas em Prece
Rogai por nós, com Vossas Preces de Pássaros
Rogai por nós, com Vossos Gorgeios e Trilos
Santas Ordens dos Espíritos Bem-Aventurados, rogai por nós
Rogai por nós e por todos os aventureiros do cosmos
Rogai por nós e por todos os navegadores solitários
Rogai por nós e por todos os que se fazem rogados
S. João Baptista, rogai por nós
Rogai por nós, Santo Precursor da Suma Santidade
Rogai por nós, Santo Comedor de Mel dos Rochedos
Rogai por nós, Santo do Baptismo num Rio de Sangue
Santos Patriarcas e Profetas, rogai por nós
Rogai por nós e ensinai-nos a ler a Bíblia
Rogai por nós e ensinai-nos o Triângulo, o Quadrado e o Círculo
Rogai por nós e ensinai-nos o Vosso Cúmulo de Geometria
S. Pedro, rogai por nós
Rogai por nós, Primeira Pedra
Rogai por nós, a caminhar sobre as águas, mergulhado em dúvidas
Rogai por nós, Pescador de Pérolas
S. Paulo, rogai por nós
Rogai por nós, Apóstolo e Oráculo
Rogai por nós, Louco Proclamador de Cristo
Rogai por nós, até ao Dia da Segunda Vinda
Santo André, rogai por nós
Rogai por nós, com a Voz em Sangue
Rogai por nós, Crucificado em X
Rogai por nós na Luz da Manhã Incógnita
S. Tiago Maior, rogai por nós
Rogai por nós, a nossa Senhora deI Pilar de Saragoça
Rogai por nós, Peregrino de Mãos Postas
Rogai por nós, de surrão, concha e vara de cerejeira
S. João, rogai por nós
Rogai por nós, Amigo íntimo de Jesus
Rogai por nós, Unido ao Coração Sagrado
Rogai por nós, Segundo Filho de Maria, aos Pés da Cruz
S. T omé, rogai por nós
Rogai por nós, com Vossos Dedos nas Chagas das
Mãos de Cristo e na Sua Chaga do Lado
Rogai por nós e confirmai a nossa fé na Vossa Dúvida
Rogai por nós, connosco, numa só Presença Física
S. Tiago Menor, rogai por nós
Rogai por Qós, Familiar do Senhor
Rogai por nós, Primeiro Bispo de Jerusalém
Rogai por nós, Magro e Andrajoso, na Basílica da Agonia
S. Bartolomeu, rogai por nós
Rogai por nós, dez vezes por dia
Rogai por nós, cem vezes por noite
Rogai por nós, mil vezes por toda a eternidade
S. Mateus, rogai por nós
Rogai por nós, Supliciado no Altar de Deus
Rogai por nós, Primeiro Intérprete do Verbo
Rogai por nós, Erguido do T elónio para seguir a Cristo
S. T adeu, rogai por nós
Rogai por nós, Rogador Infalível
Rogai por nós, Patrono dos Aflitos em Pranto
Rogai por nós, Advogado das Causas Impossíveis
S. Matias, rogai por nós
Rogai por nós, Apóstolo Escolhido
Rogai por nós, com Corpo, Alma e Espírito
Rogai por nós, com Fé, Oração e Estudo
S. Lucas, rogai por nós
Rogai por nós, Escritor da Mansidão de Cristo
Rogai por nós, Médico de Coração Compassivo
Rogai por nós, Pintor do Retrato de nossa Senhora S. Marcos, rogai por nós
Rogai por nós, Confessor e Ponte sobre o Abismo
Rogai por nós, Arquitecto do Altíssimo
Rogai por nós, Navegador dos Sete Mares de Már- more esculpido
Santos Apóstolos e Evangelistas, rogai por nós
Rogai por nós em Aramaico, em Hebraico e em Grego
Rogai por nós em Latim, em Árabe e em Síriaco
Rogai por nós em todas as línguas contidas na linguagem única do Espírito Santo
Santos Discípulos do Senhor, rogai por nós
Rogai por nós e livrai-nos das doenças
Rogai por nós e dirigi os nossos passos
Rogai por nós e mostrai-nos o Caminho das Bem-Aventuranças
Santos Inocentes, rogai por nós
Rogai por nós, com Vossos Olhos Súplices
Rogai por nós, com Vosso Riso Virgem
Rogai por nós, Crianças de Folhagem
Santo Estêvão, rogai por nós
Rogai por nós, Primeiro Diácono
Rogai por nós, Primeiro Mártir
Rogai por nós, Primeiro Servidor de Todos
S. Lourenço, rogai por nós
Rogai por nós, no Carro Triunfal do Suplício
Rogai por nós, em Áscua no Amor de Cristo
Rogai por nós, Diácono np Trono
S. Vicente, rogai por nós
Rogai por nós, Diácono e Professor de Paciência
Rogai por nós, Alegre no Sofrimento
Rogai por nós, pelo nosso Diácono e por todos os
Diáconos, que lêem, com unção, o Evangelho
S. Silvestre, rogai por nós
Rogai por nós, Bebedor das Grandes Fontes
Rogai por nós e dai-nos a beber a Embriaguês da Água
Rogai por nós, em Uníssono com o Uivo do Lobo S. Gregório, rogai por nós
Rogai por nós, Comedor de Pão de Cevada com Água
Rogai por nós, Orante Nocturno, diante de quem as portas
das igrejas se abriam por si mesmas, de par em par
Rogai por nós, Nata dos Sóbrios
Santo Ambrósio, rogai por nós
Rogai por nós, Bispo Aclamado por uma Criança
Rogai por nós e pela Santa Madre Igreja
Rogai por nós, pelo nosso Bispo e por todos os
Bispos, na Catedral da Virgem Grávida
S. Jerónimo, rogai por nós
Rogai por nós, Secretário da Infalibilidade do Papa
Rogai por nós, Transcriador Litúrgico da Bíblia
Rogai por nós, Flagelo da Heresia
S. Martinho, rogai por nós
Rogai por nós, Papa petrificado
Rogai por nós, descalço, com os pés de pedra em ferida
Rogai por nós, Papa do Sacrifício
Santos Pontífices e Confessores, rogai por nós
Rogai por nós, com Vossos Braços
Rogai por nós, com Vossos Báculos
Rogai por nós, com Vossos Brados
S. Antão, rogai por nós
Rogai por nós, Grande Invocador do Nome Santo
Rogai por nós, Grande Silencioso na Gruta do Deserto
Rogai por nós, Grande Guerreiro, Herói contra o demónio
S. Bento, rogai por nós
Rogai por nós, de pés nus, sobre espinhos e silvas
Rogai por nós, de pés nus, sobre cacos de vidro
Rogai por nós, de pés nus, sobre um tapete de víboras
S. Bernardo, rogai por nós
Rogai por nós, Comentador do Cântico dos Cânticos
Rogai por nós, Taumaturgo Tremendo
Rogai por nós, Monge e Cavaleiro de nossa Senhora do Templo
S. Francisco, rogai por nós
Rogai por nós, oh Noivo da Pobreza
Rogai por nós, Imitador de Cristo
Rogai por nós, com os Estigmas a Sangrar, Todo Nu no Mais Alto da Igreja
Santo Ignácio de Loyo!a, rogai por nós
Rogai por nós e guiai-nos nos Vossos Exercícios
Rogai por nós, surdos, cegos, mudos, coxos, leprosos e paralíticos
Rogai por nós e ensinai-nos a obediência:
Santa Maria Madalena, rogai por nós
Rogai por nós e regai com Vossas Lágrimas os Pés do Salvador
Rogai por nós e enxugai os Pés do Salvador com Vossos Cabelos
Rogai por nós, oh Esposa Amantíssima do Verbo
Todos os Santos de Deus, rogai por nós
Rogai por nós e dai-nos maior Fé
Rogai por nós e dai-nos mais Esperança
Rogai por nós e dai-nos Caridade

António Barahona (n. 1939)

 

 

31.10.2008

Amo as horas sombrias do meu ser
em que os meus sentidos se aprofundam;
nelas encontrei, como em velhas cartas,
o meu dia a dia já vivido,
ultrapassado e vasto como numa lenda.

Elas me ensinam que possuo espaço
p’ra uma intemporal Segunda vida.
E por vezes sou como a árvore
que, madura e rumorosa, sobre uma campa
cumpre o sonho que a criança de outrora
(abraçada por suas cálidas raízes)
perdeu em tristezas e canções.

Rainer Maria Rilke (1875-1926)

 

 

30.10.2008

O Vento do Espírito

Senti passar um vento misterioso,
Num torvelinho cósmico e profundo.
E me levou nos braços; e ansioso
Eu fui; e vi o Espírito do Mundo.

Todas as cousas ermas, que irradiam
Como um nocturno olhar inconsciente,
Luz de lágrimas extinta, não sentiam
A trágica rajada, que somente

Meu coração crispava! Ó vento aéreo!
Vento de Exaltação e Profecia!
Vento que sopra, em ondas de mistério,
E tanto me perturba e extasia!

Estranho vento, em fúria, sem tocar
Na mais tenrinha flor! E assim agita
Todo o meu ser, em chamas, a exalar
Luz de Deus, luz de amor, luz infinita!

Vento que só encontras resistência
Numa invisível sombra... Um arvoredo,
Ou bruta pedra, é como vaga essência;
E, para ti, eu sou como um penedo.

E na minha alma aflita, ó doido vento,
Bates, de noite; e um burburinho forte
A envolve, arrasta e leva, num momento;
E vai de vida em vida e morte em morte.

Vento que me levou, nem sei por onde;
Mas sei que fui; e, ao pé de mim, bem perto,
Vi, face a face, a névoa a arder que esconde
O fantasma de Deus, sobre o deserto!

E vi também a luz indefinida
Que, nas trevas, se fez, esclarecendo
Meu coração, que voa, além da vida,
O seu peso de lágrimas perdendo.

E aquele grande vento transtornou
Minha existência calma; e dor antiga
Meu rude e frágil corpo trespassou,
Como a chuva uns andrajos de mendiga.

E fui num grande vento; e fui; e vi;
Vi a Sombra de Deus. E, alvoroçado,
Deitei-me àquela sombra, e, em mim, senti
A terra em flor e o céu todo estrelado.

Teixeira de Pascoaes (1877-1952)

 

 

29.10.2008

Um dia, um meu irmão que tinha o que eu não tenho
- A ridente ignorância a que só Deus assiste –
Pegou dum grande, rude, grosso lenho,
Matéria bruta, e viva que resiste...

Vencendo-a, afeiçoou as fibras angulosas
A umas formas viris, tão puras como cruas;
Pôs-lhe um trapo nas partes vergonhosas;
Estiraçou-lhe os pés e as pernas nuas.

Dos ramos laterais do lenho primitivo,
A navalhadas, fez os braços que faltavam,
Toscos, mas com, lá dentro, sangue vivo,
E tumefactas mãos que se espalmaram.

Enfim, todo a tremer de amor e de receio,
Noutro bloco, moldou uma cabeça aflita,
Com pálpebras descidas até meio
E a boca a abrir num grito que não grita.

Tudo o que de cruel a vida lhe ensinara
Mais o que tinha em si maior do que o destino,
Sem mesmo ele o saber, ganhou voz clara
No longo rosto esquálido e divino.

Dois troncos pôs em cruz e assim fez o madeiro;
Sobre ele ajuntou e cravejou tudo isto;
E aquilo que ontem era um castanheiro
Num altar figurou de Jesus Cristo.

O tempo foi rolando... E os centos de anos viram
Rojar-se a multidão ante esse lenho, – santo
Só porque, sob a graça, o esculpiram
Umas humanas mãos em pó há tanto!

Quantas profanações, depois, não arrastaram
Por lôbregos saguões, recantos, corredores,
Esses membros que bispos incensaram,
Essa cabeça do Senhor das Dores?

Até que um dia, entrando a um sótão miserável,
Vou encontrar no chão, entre sucata, aquela
Mutilada cabeça inda admirável,
Por mutilada e vil não menos bela.

Juntei, juntei, tremendo, os restos de Jesus:
A sagrada cabeça, o busto carunchoso
E os braços despregados já da cruz,
Com mãos roídas como as dum leproso.

Mandei, mandei buscar essas mutilações
Com elas me fechei no meu buraco, e o dia
Se me foi entre velhas orações,
Que eu nem sabia já que inda sabia...

Às vezes, quando o ar parece que me foge,
Me falta Deus, ou espanta a nossa condição,
Como os fiéis de outrora, a seus pés, hoje,
Dobro o joelho trémulo no chão.

Nem restos de orações lhe rezo! Nada rezo.
Espero no silêncio e na opressão, curvado,
Que Jesus Cristo ao seu madeiro preso
Tenha dó de mais um crucificado.

Das pálpebras que o tempo enegreceu, o olhar
Que entre elas se não vê, mas se adivinha e sente,
Me banha todo, então, como um luar,
E me diz que há Alguém ali presente.

Não!, já não fico só na minha solidão!
Já me não pesa tanto a minha própria cruz!
Já quase, quase sei (Jesus, perdão!)
Que tenho em ti como um irmão, Jesus.

Meus olhos, que a ruindade interior calcina,
Inundam-se-me então de bruma e de frescura,
E eu choro por nós todos, cuja sina
É sermos a imperfeita criatura...

E a graça que uma vez desceu dos altos céus
As mãos do pobre artista incógnito, as benzeu,
E as fez fazer dum tosco lenho um Deus
Tão próximo de nós como do céu.

A pouco e pouco vem sobre a cabeça
(Com o calor do sol que enxuga os próprios lodos)
De modo que já nada há que me impeça
De ser feliz!, e irmão de tudo e de todos.

José Régio (1901-1969)

 

 

28.10.2008

O caminho da manhã

Vais pelo caminho que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente ao mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros como malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia-idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos; mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.

Sophia de Mello Breyner (1919-2004)

 

 

27.10.2008

Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão

Daniel Faria (1971-1999)

 

 

24.10.2008

Vós que chorais, vinde ao Deus que chora.
Vós que sofreis, vinde ao Deus que sara.
Vós que temeis, vinde ao Deus que abriga.
Vós que passais, vinde ao Deus que fica.

Victor Hugo (1802-1885)

 

 

23.10.2008

Adélia Prado

 

 

 

22.10.2008

Tenho ao cimo da escada, de maneira
Que logo entrando os olhos me dão nela,
Uma Nossa Senhora de Madeira
Arrancada a um Calvário de capela.

Põe as mãos com fervor e angústia. O manto
Cobre-lhe a testa, os ombros, cai composto;
E uma expressão de febre e espanto
Quase lhe afeia o fino rosto.

Mãe das Dores, seus olhos enevoados
Olham chorosos, fixos, muito além...
E eu, ao passar, detenho os passos apressados
Peço-lhe: - A sua bênção, Mãe!

Sim, fazemo-nos boa companhia,
E não me assusta a sua dor; quase me apraz.
O Filho dessa Mãe nunca mais morre. Aleluia!
Só isso bastaria a me dar paz.

“Porque choras Mulher?... – docemente a repreendo,
Mas à minh’alma, então, chega de longe a sua voz
Que eu bem entendo:
“Eu sei! Teus filhos somos nós”.

José Régio (1901-1969)

 

 

21.10.2008

Que amo eu, quando Vos amo? Não amo a beleza dos corpos, nem a glória temporal, nem a claridade da luz – essa luz a meus olhos tão cara – nem as doces melodias das canções omnímodas, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros feitos aos abraços da carne. Nada disto amo, quando Vos amo a Vós. E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e deleite do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde cheira um perfume que o vento não dissipa, onde se saboreia uma comida que sofreguidão alguma fará desaparecer, onde se sente um contacto que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo a Deus.

Santo Agostinho (354-430)

 

 

20.10.2008

 

Poema do Menino Jesus
Alberto Caeiro
Interpretação: Maria Bethânia

 

 

 

17.10.2008

Na dor da selva não se pode aceitar um Deus qualquer. Na selva é preciso um Deus racional

En el dolor de la selva no puedes aceptar a cualquier Dios. El Dios ritual infantil no te basta. No te basta con pensar que Dios es amor o que no puedes explicarlo. En la selva necesitas un Dios racional.
Si tu fe no es racional, si no estás seguro de que Dios existe, no puedes entablar una relación con Él.
Entendí, leyendo la Biblia, que Dios no es energía, ni luz ni partículas de gas en el cosmos, sino que Dios es un ser humano, en otras palabras, que lo que nosotros tenemos de humanos es lo que tenemos de Dios.
Todos los personajes de la Biblia están retratados con sus debilidades, sus miserias, sus pequeñeces. Todos estamos retratados ahí.
Yo descubrí un Dios con sentido del humor, con sentido de la autoridad, un Dios que educa, un Dios que ama, pero sobre todo, que es un Dios en el sentido de que lo puede todo.
Un robot puede estar programado para amar, pero si no tiene la libertad de no hacerlo, el amor no tiene valor.

Ingrid Betancourt

 

 

15.10.2008

Perguntou um irmão ao seu abade: “Como é que nos tornamos loucos pelo Senhor?” E o ancião respondeu: “Havia num mosteiro um rapaz que tinha sido confiado a um velho sábio para que ele o orientasse e lhe ensinasse o temor de Deus. E falava-lhe dizendo: ‘Se alguém te insultar, pede-lhe a sua bênção; à mesa, como o que é mau e deixa o que é bom; se tiveres de vestir um traje, pega no mau e põe de parte o bom’. ‘Mas isso são loucuras’, disse o rapaz, ‘por que me dizes para fazer essas coisas?’. E o ancião respondeu: ‘Peço-te que faças isto para que o Senhor te torne sábio’”. E assim o ancião demonstrou o que devia fazer aquele que quer tornar-se louco pelo Senhor.

Ditos e feitos dos Padres do Deserto

 

 

14.10.2008

Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nibilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. « Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.” Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.

P. António Vieira (1608-1687)

 

 

13.10.2008

Vinde agora, tribulações, vinde, desprezos do mundo, e seus errados juízos! Vinde, e embatei neste escudo, quebrai aqui as lanças, que os filhos de Maria Santíssima estão seguros todos, gloriando-se neste nome: “Hão-de gloriar-se em Vós, todos os que amam o Vosso nome”.
Mas, alerta, corações, que o gloriar-se neste nome é somente para os que o amam: Os que amam o Vosso nome. E quem poderá amar o nome de Maria, se não amar o nome de Jesus? Mas quem chegará a amar a Jesus, se não chamar pelo nome de Maria? Prostremo-nos fiéis diante de Maria Santíssima, chamemos pelo seu nome e peçamos-lhe afectuosamente que nos alcance o amor de Jesus.
Ó Virgem Sacratíssima, Mãe de Deus e Senhora nossa, Mãe verdadeiramente amável e admirável, Senhora única e Rainha de todas as criaturas: Ou arrebatai convosco os nossos corações, ou nos alcançai que amemos a Deus de todo o coração. Ficar no mundo e não amar a Deus do Céu nem ter a posse nem a saudade, quem o poderá sofrer? Ó amor de Cristo, se me abrasasses, se me consumisses! Será possível que amemos algum dia a Jesus Cristo? Vede-o, Senhora, e, se é possível, quando havemos de amar? Adverti, Senhora, que um instante deste amor vale toda a eternidade.
Até agora, ai de nós, ainda não amámos. Ó amor soberano, amor casto, amor forte, amor que obra maravilhas, amor eterno, amor de Cristo, se te fixaras em minha alma, se atearas, se a abrasaras, se a consumiras!
Amor de Cristo! Nisto pedimos tudo, e confiamos alcançá-lo, pois sois Rainha tão poderosa, que a Vossa púrpura real é o sol de justiça, que é Cristo; o Vosso ceptro é a vara da virtude de Deus, que é Cristo; a Vossa coroa é o Rei imortal dos séculos, que é o mesmo Cristo, a quem seja dada honra e glória.

P. Manuel Bernardes (1644-1710)

 

 

10.10.2008

 

 

Romaria

É de sonho e de pó
O destino de um só
Feito eu perdido em pensamento
Sobre o meu cavalo
É de laço e de nó
De gibeira ou jiló
Dessa vida cumprida a sol

Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida

O meu pai foi peão
Minha mãe solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
À custa de aventuras
Descasei, joguei
Investi, desisti
Se há sorte eu não sei nunca vi

Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida

Me disseram porém
Que eu viesse aqui
Pra pedir de romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar

Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
E funda o trem da minha vida

Composição: Renato Teixeira (n. 1945)
Voz: Elis Regina (1945-1982)

[12 de Outubro: Dia de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil]

 

 

09.10.2008

Após falar assim, perguntas a ti mesmo: isso é crer de verdade?
E o que é crer: pensar uma imagem nitidamente pintada,
saudá-la com certeza, e deixá-la assim, para andar
seguro e rico pela vida, sem se lembrar do que não crê?
Ninguém sabe se crê muito ou nada, nem o que crê de verdade
debaixo do que imagina, onde não cabe conhecer-se.
A fé que se ignora a si mesmo é o oceano total,
em sombra, com breves ilhéus de angústia ou confiança,
(meio grão de mostarda de luz já seria demasiado);
é o material do viver, ou se não, ninguém aguentaria a vida.
E muitos que nem querem ouvir a palavra “Deus”, gasta,
suja, feita um látego ou uma pedra para terror do homem,
talvez sejam crentes e santos diante de outra secreta face divina.
Está escrito: muitos que jamais acreditaram serem crentes,
na hora da verdade serão proclamados benditos
para seu assombro – “Quem, nós, Senhor? Não sabíamos” –,
e puseram a sua vida em fé pelos outros, mesmo sem dizer a si próprios
que aí andava a palavra “Deus”, a imagem com barba,
só por compaixão e decoro, pelo que está bem que se diga:
enquanto muitos que rezavam alto com o título de “crentes”
e desdém pelos outros, ver-se-ão postos para trás, estupefactos.
Falamos porque cremos ou cremos porque falamos de verdade?
Falar de verdade é, sem querer, entrar no jogo mais amplo,
na vasta armação da fala com suas raízes obscuras e alheias.
Deixa-te levar pela mão pelo grande anjo da linguagem,
crê na tua própria palavra, na de todos e estarás
salvo na rede do falar, virado para o grande ouvido
onde toda a linguagem, carne de memória, há-de ser recordada:
o chamamento do menino que agora morre de fome num casebre;
as centenas de milhões de murmúrios amorosos de ontem à noite;
as diárias palavras simples, como o pão, de todos com todos;
as ordens dos que mandam que outros manchem suas mãos
esmagando os fracos – mas esses clamarão para encontrar castigo
que limpe e salve o que ainda nesse clamor continua a viver –:
as ocorrências que não dizemos mas notamos que são ouvidas
no fundo do nosso ser, como por um espião sem sono.

Fala com sentido do que vives e estarás assim a rezar
e a actuar como um herói: estarás a dar-te a verdade
onde ficamos entregues nas mãos do Ser que é Palavra
e que um dia começará em voz alta outro diálogo que não acabe.

José Maria Valverde (1926-1996)

 

 

07.10.2008

E assim, apesar de estarmos doentes para alcançar a verdade com a transparência da razão e por isso nos ser necessária a autoridade dos Livros Santos, já principiara, contudo, a crer que de modo nenhum concederíeis autoridade tão prestigiada à Escritura em toda a terra, se por meio dela não quisésseis que acreditassem em Vós e Vos procurassem.
Portanto, já atribuía à elevação dos mistérios as obscuridades que na Sagrada Escritura me costumavam impressionar, conquanto tivesse ouvido muitas explicações verosímeis a esse respeito. A veracidade bíblica parecia-me tanto mais vulnerável e digna de fé sacrossanta, quanto era claro que, possuindo a Escritura a qualidade de ser facilmente lida por todos os homens, reservada a dignidade dos seus mistérios para uma percepção mais profunda. Com palavras claríssimas e em estilo simplicíssimo, dá-se a todos e estimula a vontade dos que não são levianos de coração, para a todos receber no seu seio e comum e (só) transportar, pela porta estreita, poucas almas para Vós. Estas porém, são muitas mais do que as que levaria, se ela não brilhasse no elevado píncaro da autoridade e não atraísse as multidões ao regaço da santa humildade.
Pensava nisto e assistíeis-me; suspirava e ouvíeis-me; flutuava e governáveis-me; seguia pela estrada larga do mundo e não me desamparáveis.

Santo Agostinho (354-430)

 

 

06.10.2008

Nos “Actos dos Apóstolos” um santo eunuco, ou antes, um homem – pois que a Escritura assim o designa – estava uma ocasião a ler Isaías, quando Filipe lhe perguntou: “Pensas compreender aquilo que lês?” Ele respondeu: “Como o poderei, se ninguém me instruir?” Não sou eu, diga-se de passagem, nem mais santo, nem mais zeloso que aquele eunuco, que veio da Etiópia ao templo, ou seja, de outra extremidade do mundo, abandonando a corte do rei, com um tão grande amor pela ciência divina que lia, mesmo em seu carro, o texto sagrado, sem que, contudo, conhecesse – apesar de deter o livro e de reflectir sobre as palavras do Senhor, repetindo-as com sua língua, fazendo-as ressoar sobre seus lábios, – Aquele que, ignorando, venerava no livro. Chegou Filipe: mostra-lhe Jesus escondido pela letra e – é poder admirável deste doutor! – no mesmo momento acreditou, foi baptizado e se tornou cristão e santo e passou de discípulo a mestre.

S. Jerónimo (347-420)

 

 

02.10.2008

Os anjos são rijos como as pedras
E leves como as prumas.
Na leira rasa de aves. Tu, que redras
Terra, névoas e espumas,
– Deus de teu nome! – sabes
que um anjo é pouco e imenso:
Por isso cabes
No anjo e ergues o incenso.

Desfaleço a pensar-te
ó ser de Anjos e Deus
Que baixa em mim:
Sobe-me na alma, que ando a procurar-te
E dizendo-te Deus
Acho-te assim.

Anjos são os terríveis
Modos de Deus connosco;
Nós as suas possíveis
Transparências a fosco.

Lívidos, sem respiração
Ficávamos do toque
Da primeira asa vinda;
Mas eles rondam apenas a oração
Que múrmura os evoque,
E vão, e tornam ainda.

Deles para cima, ainda mais graus de glória
Relutam ao sentido
Que deles vem à memória
Como uma bolha de ar na água do olvido:
No mais, são tão pesados,
Os anjos leves ao justo...
Tão alados,
Mas desgostosos do nosso susto!

É isso! Disse-me agora
O verbo súbito surpreso:
Ser anjo é espanto da demora
Nossa e do peso pávido
Que nos estende.
Terrível é quem toca terra
Para a levar, e não a rende.

Que o anjo, de si, é ávido
De transe e rapidez,
E é ele que chora
Nosso chumbo, hora a hora:

É ele que não entende
A nossa estupidez.

Vitorino Nemésio (1901-1978)

 

 

01.10.2008

Ser vossa esposa, ó Jesus! Ser carmelita, ser, através da minha união convosco, mãe das almas, tudo isso devia bastar-me. E, contudo, sinto em mim outras vocações: sinto em mim a vocação de guerreiro, de sacerdote, de apóstolo, de doutor, de mártir. Queria poder realizar as mais heróicas missões, sinto-me com a coragem de um cruzado, gostaria de morrer num campo de batalha, em defesa da Igreja. Queria iluminar as almas, como fizeram os profetas e os doutores. Gostava de poder percorrer a terra, pregar o Vosso Nome e enfiar em solo infiel a Vossa cruz gloriosa, ó meu Bem-Amado! Mas uma só missão nunca me bastaria: desejava poder, ao mesmo tempo, anunciar o Evangelho em todas as partes do mundo, até nas mais longínquas ilhas. Queria poder ser missionária, não só durante alguns anos, mas tê-lo sido desde a criação do mundo e continuar a sê-lo até á consumação dos séculos.

Santa Teresa do Menino Jesus (1873-1897)

 

 

30.09.2008

Amores quotidianos, longas familiaridades com o esforço ou a desolação, alegrias breves, miraculosas, sem palavras, obras vulgares, incertas, lenta libertação da muito próxima animalidade. Por detrás desta tela sem brilho, cintila uma grande aventura, um drama que ultrapassa toda a comum medida, e que, precisamente porque não é mensurável nos seus efeitos, é mais transparente ao silêncio que à algazarra, e às palavras quotidianas: pai, pão, alegria, morte, amor, pecado, que às dramáticas mobilizações nervosas. Todo o ensinamento cristão cabe entre estas duas palavras: trabalho, boa-vontade. A primeira foi pronunciada no limiar da humanidade, por cima de nossos membros ainda frescos da terra original; a segunda no limiar dos novos tempos, á luz frágil da noite de Natal. Trabalho: esforço paciente, progressivo, aplicado. Boa-vontade: disposição macia e dócil dum coração que se procura e se experimenta.
Gosto de pensar que o divino é, talvez, mais o menos visível do que o invisível; o murmúrio, mais que o silêncio; a discrição, mais que a catástrofe. Talvez que as trombetas de Jericó mais não sejam que uma perturbante palavra segredada aos nossos ouvidos. O brilho do dia será um pouco mais vivo. A macieira terá um ar mais feliz, o carvalho será eterno, e em cada tosto a graça dos dias únicos tornar-se-á quotidiana. Talvez. Deus não é expressionista. Não tem o gosto das desgraças.
Mas também não penso que Ele goste dos satisfeitos, dos optimistas; mas dos simples, dos que têm piedade e trabalham sem a exibirem e sem nela se instalarem.

Emmanuel Mounier (1905-1950)

 

 

29.09.2008

Imagem

Teixeira de Pascoaes

 

Anjo incolor

Abri o livro na altura
em que o Anjo me sorria
e em vez de mel prometia
amor, descanso e ternura.

Falava como que a sós.
E as palavras flutuavam.
Eram pombas que poisavam
no fio da sua voz.

Escutei-o de olhos no chão
como se fosse o culpado,
como se o mundo enredado
estivesse na minha mão.

Abri o peito e mostrei-lhe
a areia, a pedra britada,
os planos da grande estrada
onde o Anjo se ajoelhe.

Ele fitou-me, de frente,
de olhos frios como brasas.
E abrindo e fechando as asas
rasgou o céu, lentamente.

Sobre a folha imaculada
por longo tempo nevou.
Sentei-me à beira da estrada
mas o Anjo não voltou.

António Gedeão

 

 

26.09.2008

Da humildade

E agora, débil miserável, ergue o teu olhar e repara no que és. Quem és tu, e quais os teus méritos, para o Senhor te haver chamado desse modo? Oh!, mísero coração sem energia, adormecido na preguiça, que te não acorda nem a atracção deste amor, nem a voz deste chamamento! Acautela-te, desgraçado, porque no tempo presente te espreita o Inimigo. Nunca te julgues mais santo nem melhor, seja pelo valor da tua vocação, seja pela singular forma de vida que abraçaste. Considera-te, antes, mais desgraçado e maldito, se, com o auxílio da graça e da direcção espiritual, não fazes da melhor forma o que está ao teu alcance para viveres segundo a tua vocação. Devias ser tanto mais humilde e afectuoso para com o teu esposo espiritual, quanto é certo que Ele – o Deus todo-poderoso, Rei dos reis e Senhor dos senhores! – resolveu humilhar-Se para descer ao teu nível. (...)
Olha agora para diante e deixa o que está para trás. Vê o que te falta ainda e não o que já tens, pois essa é a melhor maneira de adquirir e conservar a humildade. A partir de agora, toda a tua vida deve ser, por completo, um desejo, pois só assim poderás crescer na perfeição. Tal desejo, por seu turno, deve ser sempre despertado na tua vontade, pela mão de Deus todo-poderoso, aliada ao teu consentimento.

in A Nuvem do Não-Saber

 

 

23.09.2008

E porque não me quero alongar em prefácios, dir-vos-ei sem mistura e sem disfarce aquelas coisas que a minha alma vos quer dizer. Até quando, minha querida Filha, pretenderás obter sobre o mundo e a afeição vitórias diferentes daquelas que alcançou Nosso Senhor, com o exemplo das quais tantas vezes e de tantas maneiras Ele te exorta? O que fez o Senhor de todo o mundo? Pois que em verdade, minha Filha, Ele era o Senhor legítimo de todo o mundo; alguma vez levantou ele querela por mais não ter que o onde reclinar sua cabeça? Mil vezes o espoliaram: em que processos se meteu? Diante de que tribunal obrigou alguém a comparecer? Em verdade, sabeis que em nenhum, tal como não quis denunciar os traidores que o crucificaram diante do tribunal da justiça de Deus; mas antes invocou sobre eles a autoridade da misericórdia. E foi isso que tanto e tanto nos inculcou: A quem te quiser tirar em juízo a tua túnica, dá-lhe também o teu manto.

Não o digo, de forma alguma, por superstição, e não censuro aqueles que se batem, desde que seja em verdade, por julgamento e justiça. Mas digo, exclamo, escrevo, e, se fosse preciso, o escreveria com meu próprio sangue, que todo aquele que quer ser perfeito, e todo o filho de Jesus Cristo crucificado, deve praticar esta doutrina de Nosso Senhor...

Vede como esses cristãos são cristãos! O Mestre disse-lhes: A quem te quiser tirar a tua túnica, dá-lhe também o teu manto; vede como pelos bens temporais eles põem em causa os eternos e o amor terno e fraternal que uns aos outros devem ter...

Mas, dir-me-á a prudência humana, a que estado nos quereis reduzir? A que estado? Hão-de calcar-nos aos pés, torcer-nos o nariz, rir-se de nós como de fantoches, vestir-nos e despir-nos, sem abrirmos a boca? Sim, na verdade, é tudo isso que eu quero; e se eu o não quisesse, Jesus Cristo o quereria em mim. E o Apóstolo da Cruz do Crucifixo exclama: Até agora temos fome, temos sede, somos nus, somos escarnecidos; e, finalmente somos como a casca da maçã, o excremento do mundo, uma pele de castanha ou uma casca de noz. Os habitantes da Babilónia não compreendem esta doutrina, mas os habitantes do monte do Calvário praticam-na.

S. Francisco de Sales

 

 

18.09.2008

Não é por falta de fermento que o mundo quase não é levedado pelos cristãos. A quantidade de fermento, aliás, interessa pouco, pode bem ser suprida se amassarmos tudo durante mais tempo. O que falta é saber misturar o fermento na massa. Desde que seja bem amassado, basta para uma massa enorme, uma massa de três medidas, disse Cristo, ou seja de oitenta quilos, uma pitada de fermento de qualquer dona de casa.
Mas o que desgraçadamente acontece é que o fermento não se vai misturar com a massa. Tem medo de amolecer, enquanto, ao contrário, era ele que devia vivificar a massa.
Ou então pensa-se que ele não é ainda suficiente, não está ainda suficientemente bem formado, como se não fosse misturando-o bem na grande gamela onde se faz o pão que a sua força transformadora aumenta.
Outros pretendem ingenuamente guardá-lo intacto, como se ele fosse melhor puro que unido à massa, como se qualquer pão que fosse feito sem fermento não fosse pura e simplesmente incomível. O fermento é feito para a massa: sozinho, de nada serve, não presta e tem que se deitar fora. Nas nossas aldeias o fermento anda de há séculos para cá de casa em casa, para ser misturado de dois ou de três em três dias com a massa; se o guardassem, em menos de um mês já era inútil.
Também acontece que realmente se fermente no meio da gamela, mas que ninguém o tire de lá, com medo das más companhias...
E no entanto, para que o pão levede, é preciso que o fermento desapareça, absorvido pela massa, que se torne absolutamente inseparável desta, que seja tão massa como o resto da massa, massa viva, viva da própria força que o fermento leva a todos os seus poros.
Mas se o fermento receia a massa..., então o pão é informe e massudo...
Muitas vezes tive ocasião de ver, nas paróquias das nossas cidades e aldeias, óptimos fermentos, muito bem colocados, mas separados do grosso da massa por um muro de três metros, por uma barreira de incompreensão, por um fosso de desdém, ou pelas farpas do orgulho... Se Cristo voltasse, que diria, que diria Ele?...

H. Godin

 

 

11.09.2008

O Anjo

O Anjo que em meu redor passa e me espia
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me, cantando, no seu peito.

Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que, feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Poisava a sua mão na minha mão.

E foi como se tudo se extinguisse.
Como se o mundo inteiro se calasse,
E o meu ser liberto enfim florisse,
E um perfeito silêncio me embalasse.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

 

 

08.09.2008

Ó tu, que sobremaneira sentes a impressão de ser arrastado pelo vento deste século, que mais te vês envolto em trovoadas e tempestades que na terra firme que não pisas, não despregues os olhos do esplendor desta estrela, se não queres que o tufão te trague! Se os ventos das tentações ruidosamente soprarem, se vierem bater nos rochedos das tribulações, olha a estrela, invoca Maria.
Se fores sacudido pelas ondas do orgulho, da ambição, da traição, da inveja, olha a estrela, invoca Maria.
Se a cólera ou a avareza ou as seduções da carne sacudirem a pequena barca da tua alma, invoca Maria.
Se, perturbado pela enormidade de teus crimes, confundido pela sujidade da tua consciência, gelado de medo ao só pensamento do Juízo, começares a ser engolido pelo remoinho da tristeza, pelo abismo do desespero, pensa em Maria.
Nos perigos, nas angústias, na dúvida, pensa em Maria, invoca Maria. Que ela se não afaste da tua boca, se não afaste do teu coração e, para obteres o socorro da sua oração, não desprezes o exemplo da sua vida.
Se a seguires, não te desvias.
Se lhe rezares, não desesperas.
Se a consultares, não te enganas.
Se nela te apoiares, não cais.
Se ela te proteger, nada temes.
Se ela te conduzir, não te fatigas, se te dor favorável, chegarás ao fim.
E assim em ti mesmo experimentarás quão exactamente foi dito: “E o nome da Virgem era Maria”.

S. Bernardo (1090-1153)

 

 

05.09.2008

O amor começa em casa

Se o mundo conhece hoje a desordem e o sofrimento, isso parece-me ser causado pela falta de amor no lar e na vida familiar. Não temos tempo para os nossos próprios filhos, não temos tempo um para o outro: não temos tempo para nos saborearmos mutuamente. Se pudéssemos transmitir à nossa vida aquilo que Jesus, Maria e José viviam em Nazaré, se nós pudéssemos fazer das nossas casas uma outra Nazaré, creio que a paz e a alegria reinariam no mundo.
O amor começa em casa; o amor vive nos lares, e é por isso que o mundo de hoje conhece tanto sofrimento e tão pouca felicidade. Jesus dir-nos-á, se o escutarmos, aquilo que já disse: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.” Ele amou-nos através do sofrimento e da morte por nós na cruz; se nos quisermos amar uns aos outros, se quisermos que esse amor entre na nossa vida, é no lar que ele deve começar.
Devemos fazer das nossas casas centros de compaixão e jamais deixar de perdoar.
Hoje cada pessoa parece ser possuída por uma pressa terrível, pela ansiedade do crescimento, pela da riqueza, ao ponto que as próprias crianças deixaram de ter tempo para os seus pais, e que estes não têm mais tempo um para o outro; é no lar que começa a fractura da paz do mundo.
As pessoas que se amam plena e verdadeiramente uma à outra são o que há de mais feliz no mundo. Nós bem o vemos até nos mais pobres; eles amam os seus filhos, eles amam o seu lar; podem não ter quase nada, ou não ter mesmo nada, mas são felizes.
O amor vivo faz mal. Na prova do seu amor por nós, Jesus morreu sobre a cruz. Ao dar a vida ao seu filho, uma mãe passa pelo sofrimento. Quando há verdadeiramente amor mútuo, há necessariamente sacrifício.

Beata Teresa de Calcutá

 

 

04.09.2008

Se pelo olhar o coração se vê,
não tenho outro sinal mais manifesto
da minha chama: e só por tal aspecto
merecerei, senhor, tua mercê.

Teu espírito, talvez, com maior fé
da que imagino, ao ver o fogo honesto
que tão alto arde em mim..., piedoso e presto
a graça que te peço enfim me dê.

Oh, feliz esse dia, se isto é certo!
E pare então o tempo, e o sol no céu,
e das horas os tão antigos passos,

até que eu possa ter, mesmo sem mérito,
o doce e desejado senhor meu
para sempre entre meus indignos braços!

Miguel Ângelo (1475-1564)

 

 

02.09.2008

O altar visível é uma pedra, mas santificada porque recebe o Corpo de Cristo; o altar que é o pobre é santificado porque é o Corpo mesmo de Cristo. Por isso mais temível que o outro é este altar junto do qual tu, leigo, estás... Mas tu que veneras o altar que recebe o Corpo de Cristo, desprezas o próprio Corpo de Cristo e passas sem ver a sua aflição. Esse é o altar que tu podes encontrar por toda a parte, nas ruas e nas praças; e a qualquer hora podes nele oferecer o teu sacrifício – porque também sobre ele se pode oferecer o sacrifício. E tal como o padre, de pé, no altar, invoca o Espírito, assim tu o podes invocar, não por palavras, mas por obras. porque nada há que possa alimentar e avivar o fogo do Espírito, como esses óleos da esmola, quando largamente espalhados... O perfume da esmola penetra até aos mais altos cimos do céu... Guardas silêncio, mas a tua esmola clama ao céu; é um sacrifício de louvor. O vitelo não foi imolado, a carne não foi consumida pelo fogo, mas uma alma espiritual deu dos seus próprios bens, e esse é um sacrifício incomparável que ultrapassa tudo de que o amor pelos homens pode ser capaz. Sempre, pois, que vês um pobre, sabe que contemplas um altar. Sempre que vês um mendigo, em vez de o ultrajares, venera-o; e se o ultrajam, afasta os que o insultam e protege-o. Assim te pode ser Deus propício, e podes obter os bens que nos foram anunciados.

S. João Crisóstomo

 

 

01.09.2008

Do livro dos Actos dos Apóstolos

A luz de Damasco é um grito
Para a ovelha que regressa

A luz de Damasco é um tombar do trigo, um cair
Do grão – cega tanto como os olhos
De um homem perseguido quando se volta
Para nós

A luz de Damasco golpeia. É circuncisão
Que abre, limpa, a luz de Damasco
É dura. Da dureza

Das pedras que um mártir junta com as mãos
Com que empedra o caminho para a morte. A luz
De Damasco é esse lume

Da oração de um mártir ao morrer

Daniel Faria (1971-1999)

 

 

15.08.2008

Voltarei à penumbra fresca da igreja
Ancestral, silenciosíssima e vazia,
Aonde está pousado o teu altar:
Doce mãe Maria...
E ajoelhar-me-ei,
E fecharei os olhos sem pensar...
- Que a minha oração nada mais seja:
Basta descansar.

Cristovam Pavia (1933-1968)

 

 

14.08.2008

Crucifixo de Ouro Preto

Crucifixo fixo fixo,
Crucifixo, Deus parado
Para eu poder te fixar,
Deus ocluso na tua cruz,
Entre mim e ti, ó Deus,
Quantas vezes dou a volta,
Quantos olhares, angústias,
Súplicas mudas, silêncios,
Falta de jeito e aridez,
Crucifixo fixo fixo,
Deus fixado por amor,
Deus humano, Deus divino,
Deus ocluso na tua cruz,
Crucifixo fixo fixo
Nosso irmão Cristo Jesus.

Murilo Mendes (1901- 1975)

 

 

12.08.2008

Glória a Ti, Cristo, luz de verdade e sol de justiça, que desceste a descansar na Igreja e assim a alumiaste: na Criação vieste e ela resplandeceu. Aproximaram-se de ti os pecadores e foram purificados. Aqueles que fugiam e aqueles que se perdiam, esses voltaram. Viram os cegos e abriram-se-lhes os olhos; e as almas tenebrosas acederam à luz. Ouviram os mortos a tua voz e ergueram-se. os prisioneiros e os cativos foram libertados; e os povos dispersos uniram-se. Tu és a luz indeclinável; tu és a manhã resplandecente, que noite alguma maculará. Abram-se nossos olhos à tua claridade, e a tua manhã, ao chegar, nos introduza à prática do bem. Sejam os nossos espíritos atados em teu amor; e, assim com nos tornaste dignos pela tua misericórdia de fugir à escuridão da noite e de alcançar a glória da manhã, faz com que a tua palavra vivificadora e omnipotente dissipe, como a fumo, todas as aflições que nos perturbam; e que, pela sabedoria que de ti emana, triunfemos das ciladas do Demónio, nosso inimigo, que busca ocultar-nos ao anjo da luz. Protege-nos, Senhor, para que não tombemos nos actos de escuridão e de noite; possa o nosso olhar não se desviar da tua luz resplandecente e possa a nossa conduta regular-se pelos teus preceitos. Para que possamos alcançar a tua graça, esse claro dia de que gozam os justos, e que na casa da vida cantemos, com todos os santos, santos hinos á tua bondade, á perfeição do teu Pai invisível, à glória do teu Espírito Santo, agora e sempre e por todos os séculos dos séculos. Amen.

Liturgia Oriental

 

 

08.08.2008

Imagem

Orla Marítima. Fac-simile (in Colóquio Letras)
Ruy Belo (27.02.1933 - 08.08.1978)

Orla Marítima

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo das avenidas
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
Gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Ruy Belo

 

 

06.08.2008

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. 
Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. 
Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. 
Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.
Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo.
Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. 
Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. 
Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. 
Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. 
Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objectivo deve ser o de amigo. 
Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. 
Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. 
Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. 
Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. 
Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. 
Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. 
Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive. 

Vinícius de Moraes (1913-1980)

 

 

05.08.2008

Na estação própria

Primavera, Verão, Outono: dias em que se adivinha
Um mundo prévio aos nossos conhecimentos, em que
As flores pensam na concretude do cheiro das cores
E animais de idade indefinida perseguem vidas irrisórias,
Horizontais, evitando serem, com esse nível de conduta,
Assessores da intriga do homem para se tornar divino.

Um metrónomo infalível instala-se em tudo: assim, em Maio
Crias de pássaros no ovo gritam às outras: Nasçam!;
Os cucos surpreendidos por Junho desafinam; quando Julho
Obeso liga o calor da terra, desembaraçando amarras venenosas,
As víboras entram na festa; avisadas pelo beliscão de Outubro
As folhas novas dão às velhas o puxão libertador.

Todavia, o Inverno tem o verbo certo de um olhar caseiro
Para nós mesmos, sentados cara a cara com os Nomes Próprios,
Tempo para ler os pensamentos, o tempo exacto
De experimentar novos metros e novas receitas,
De reflectir nos factos que meses mais quentes trouxeram
Até que, transmudados, façam parte de uma história humana.

Aí, respondendo à nossa exigência de compreensão,
A Natureza afrouxa o esgar até um arreganho mutável,
Pedras, sapatos velhos, renascem como signos sacrificiais,
Acenam-nos na Primeira Pessoa dos mistérios
Que desconhecem, acartando uma mensagem
Da única Fonte invisível do singular das coisas.

W. H. Auden (1907-1973)

 

 

01.08.2008

Lucas, 21, 28

Quando o último pássaro morrer
na última oliveira a ocidente
opõe o peito ao que acontecer
e levanta a cabeça dignamente

Despede-te da terra onde nascer
tu nasciam enfim continuadamente
repara no nascente e no poente
que muito em breve deixarás de ver

Não valem cinco pássaros apenas
dois asses e deus não os reconhece
no meio das demais coisas terrenas?

Levanta-te. Coragem coração
O espírito nas coisas comparece
Aproxima-se a libertação

Ruy Belo

 

 

31.07.2008

Amemos a Deus, meus irmãos, amemos a Deus, mas façamo-lo à custa dos nossos braços e do amor dos nossos rostos. Pois frequentemente sucede que muitos actos de amor a Deus, de complacência, de benevolência e doutras afeições semelhantes e práticas interiores de um coração terno, embora muito boas e muito desejáveis, são também muito suspeitas quando o seu autor não chega à prática do amor efectivo. Nisto, diz Nosso Senhor, é meu Pai glorificado, no facto de vós conseguirdes muitos frutos. E devemos atentar cuidadosamente neste ponto, pois muitos há que, porque têm um aspecto exterior composto e um interior repleto de grandes sentimentos a respeito de Deus, por aí ficam; e quando chega o momento de agir, ficam quietos. São lisonjeados pela sua imaginação exaltada; contentam-se com os doces colóquios que mantêm com Deus na oração; falam como se anjos fossem; mas, passado esse momento, se se trata de trabalhar para Deus, de sofrer, de mortificações, de instruir os pobres, de ir em busca duma ovelha desgarrada, de amar a ausência de qualquer coisa, de aceitar as doenças ou quaisquer outras desgraças, então não há que contar com eles, falta-lhes a coragem. Não, não nos iludamos.

S. Vicente de Paulo

 

 

29.07.2008

Procure a alma inclinar-se não ao que é mais fácil, mas ao mais difícil;
Não ao mais agradável, mas ao mais agreste;
Não ao mais gostoso, mas ao que menos gosto dá;
Não ao que é descanso, mas ao que é trabalhoso;
Não ao que é consolo, mas antes ao desconsolo;
Não ao mais, antes ao menos;
Não ao mais alto e precioso, mas ao mais baixo e desprezível;
Não a querer alguma coisa, mas a não querer nada;
Não a andar buscando o melhor das coisas temporais, mas o pior; e, por amor de Cristo, a desejar entrar em toda a nudez e vazio e pobreza que há no mundo.
E estas obras convém que se dê a elas do coração e procure nelas aplainar a vontade. Quem do coração as pratica, muito em breve, agindo ordenada e discretamente, nelas virá a achar grande alegria e consolação.

S. João da Cruz

 

 

28.07.2008

Como era bom

Como era bom haver uma festa
De vinho e cerveja para o Rei dos Reis.
Como era bom que a Corte do Céu
Bebesse esses vinhos pela Eternidade.

Como era bom que os frutos da Fé
E devoção não me faltassem.
Como era bom que a minha casa
Fosse a morada da Contrição.

Como era bom que os Anjos do Céu
Fossem visita da minha casa.
Como era bom serem piloto
De todas as barcas do Sofrimento.

Como era bom poder guiar
O grande veleiro da Caridade.
Como era bom que o barco levasse
A água fresca da Misericórdia.

Como era bom ser a minha casa
A boa Pousada Hospitaleira.
Como era bom que Jesus viesse
Se demorasse para todo o sempre.

Como era bom que as Três Marias
E sua glória aqui estivessem.
Como era bom que a Hoste Celeste
Fosse guardiã da minha casa.

Como era bom sempre louvar
O meu senhor. A sua bênção
É meu consolo e meu amparo
É mão amiga no Sofrimento.

Autor desconhecido, Irlanda, séc. X ou XI

 

 

25.07.2008

Uma pessoa deve aceitar que tem os seus momentos “não criadores”. Quanto mais honestamente se aceita isso, mais depressa um momento desses passa. Uma pessoa deve ter a coragem de fazer um intervalo. Deve ousar estar vazia e sentir desânimo – Boa noite, querido espinheiro.

Etty Hillesum

 

 

24.07.2008

Uma dedicatória

Hans, há momentos em que todo o espírito
Se transforma num par de olhos transbordantes, ou lábios
Abrindo-se para beber da funda nascente de uma morte
Cuja frescura ainda não precisam de entender.
São estes os momentos, se os há, em que um anjo entra
No espírito, como reis nas vestes
De um pobre cabreiro, para os seus actos de caridade.
Há momentos em que a fala é apenas uma boca colada
Breve e humildemente na mão do anjo.

James Merrill (1926-1995)

 

 

23.07.2008

Um dia destes temos de nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir... Antes porém, quero dizer-te que te devo o melhor da vida. Foste tu que me desvendaste o amor, que eu desconhecia. A bondade e a ternura, que eu desconhecia. Não exerci talvez nenhuma influência na tua alma – tu apaziguaste-me. O amor era em mim um simples impulso: criaste-o, e pouco a pouco essa força nas tuas mãos se transformou em sentimento religioso.
Olha para os meus cabelos todos brancos... Julgava que o amor ia diminuindo com o tempo – e o meu amor não cessa de aumentar até à morte e para além da morte.

Raul Brandão (1867-1930)

 

 

21.07.2008

O Bem e o Mal

Quantas vezes, Senhor, este mundo parece
Um absurdo tremendo, aonde transparece
Um lívido clarão de trágica loucura...
O riso de Satã derrama a noite escura.
Sobre a algidez da terra amortecida e calma
Paira, como uma névoa, um crepúsculo d’alma...
Convulsões d’agonia abrem vales profundos...
E o nosso mundo chora a grande dor dos mundos!
Vê-se, por toda a parte, um morticínio horrível
D’almas que sofrem no Silêncio e no Invisível!...
Catástrofes sem fim, horrores, crueldades...
O ar que nos dá vida é o pai das tempestades!
A água que mata a sede aos ermos viandantes
Sepulta, no seu seio, as ilhas verdejantes
E os navios que vão, sobre as ondas, ao vento...
O fogo que prepara a hóstia do alimento,
O sacro fogo a arder sobre um bendito lar,
É o fogo que queimou teu corpo, Joana d’Arc!...
E o ferro que percorre, ó dor, as nossas veias
É o ferro que segura as portas das cadeias
E o que prende, ainda hoje, o grande Prometeu
A um monte, sob o riso irónico do céu!...
O mundo, ao mesmo tempo, a ser o bem e o mal!
A Natureza louca e Deus irracional!
O mal e o bem estão numa contínua guerra.
Como a atmosfera, a dor envolve toda a terra!...
Os feros animais devoram cordeirinhos...
O vento, a gargalhar, destrói milhar’s de ninhos!
Um dilúvio de fogo arrasa uma cidade
E uma vil ambição provoca a mortandade!
O luto veste a terra e a luz do sol exangue
Tem, de beijar o mundo, os lábios com sangue...
Qual é o teu destino, ó erma Natureza?
Riso louco a doirar o rosto da tristeza...
Qual o teu fim e o teu princípio, ó Criação!
É o sofrimento, a dor, a morte e a escuridão?
É, por acaso, o Mal a essência do Universo?
Satã, em cada ser, existirá, disperso?...
Mas como é que se explica a vida de Jesus,
E este voo imortal das almas para a Luz?
Sócrates por que viu na morte uma outra vida?
Quem lhe falou do Álem? Que voz desconhecida?...
Por que é que o grande Buda um trono abandonou
E um ceptro d’oiro, com desprezo, arremessou
Para longe, partindo humilde, pobre e triste
A pregar a Verdade a tudo quanto existe?...
Inconscientes serão ou loucos desvairados
Os grandes Cristos, a sonhar, crucificados?...
Maria, a tua dor é filha dum delírio?
Donde vem o prazer amargo do martírio?...
Donde nasce esta força oculta, misteriosa,
Esta crença, esta fé profunda e religiosa
Que nos leva prà morte a sorrir e a cantar?...
Donde dimana a Graça, assim como o luar
Que dá um aspecto d’alma às formas materiais
E uma expressão de génio aos brutos animais?...
Justiça, és ilusão? Amor, és falsidade?
Jesus, és a mentira? Ó Nero, és a verdade?...
Representais acaso o mesmo sentimento
Perante o azul e o mar, as estrelas e o vento?
A vida universal não vos distinguirá?
Na mesma indiferença, a terra guardará
As vossas cinzas? E as famélicas raízes,
Num frouxo de luxúria, esplêndidas, felizes.
Esses dois corpos definhados devoraram
E entre eles nem sequer, um momento, hesitaram?
Ó trágico mistério! Ó grande noite escura!
Duma voz que blasfema e duma voz que é pura,
Do sermão da montanha e das canções de Nero,
Das palavras d’amor, dum ai de desespero,
Do soluço de dor que sufocou Maria,
Dum brilhante sorriso egoísta de alegria,
De tenebrosa voz que esmaga e que condena,
Dessa voz de perdão que aureolou Madalena,
Do murmúrio do mundo, imenso e assustador
Chegará simplesmente um pálido clamor,
Uma mesma harmonia indistinta e apagada
À alma da Criação, remota e ilimitada,
Formando assim, ao longe, um murmúrio igual
A prece da Piedade e a blasfémia do Mal?...

Talvez para a harmonia ignota deste mundo
Concorram igualmente a noite e a luz do dia...
A fome e o desespero, o Bem e o vício imundo,
A mentira e a verdade, a tristeza e a alegria!...
Lágrimas de prazer e lágrimas de dor,
Porventura, sereis a mesma névoa densa,
Sob os raios do mesmo ardente e eterno amor
Que entre elas não se encontra a menor diferença?...
Será a parte imperfeita e o todo é a Perfeição?
O Universo é um composto estranho de escarcéus,
De trevas infernais que, combinadas, dão
O fulgor do infinito e o resplendor de Deus?

Ou é este Universo uma noite d’horror
Que já segura ao colo a aurora dum amor?
É um inverno que vai mudar-se em Primavera?
Há-de ser realidade o que hoje é uma quimera?
O sonho, a aspiração e as lúcidas visões
Que deslumbram o olhar vago das multidões,
Sempre que ouvem pregar, num gesto extraordinário,
Os que vão pela estrada amarga do Calvário,
Serão o alvorecer da nova Humanidade.
A aurora excepcional do dia da Verdade?
E a blasfémia do mal contra o amor e a vida,
É qual grito da noite, ao ver-se surpreendida
Pela eterna manhã anunciadora e estranha,
Que, súbito, aparece além duma montanha?...
Estrelas, revelai-me o fim da Criação...
Que a vossa luz separe o real da ilusão.
Entre as tristes canções da treva e da mentira,
Mostrai-me o canto ideal da verdadeira Lira!
Que a sempiterna luz se faça dentro em mim.
Que eu viva no Absoluto e no que não tem fim!
Que o fantasma d’amor, que anda sempre ao meu lado,
Se transforme num ser perfeito e imaculado.
Que deixe de ser sombra e se converta em luz...
Que seja árvore em flor e não sombria cruz!...
Que o nevoeiro espesso e triste do mistério,
Se dissipe e nos deixe ver o sol etéreo
Da Verdade e do Amor raiar por sobre o mundo,
Doirando tudo, desde o sapo mais imundo
À alma mais perfeita e ao mais duro rochedo,
De maneira que o pó, o lodo, o arvoredo,
A criatura humana e as feras mais selvagens,
O vasto mar antigo e as sensíveis paisagens,
Estremeçam d’amor e vibrem de alegria
E sejam a suprema e eterna melodia!...

Teixeira de Pascoaes

 

 

 

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