A editora Alêtheia vai publicar uma antologia de contos de Natal que reúne escritores nacionais e estrangeiros, «evocando tradições tão portuguesas como as Janeiras ou a Missa do Galo», além de constituir uma «oportunidade para reler os grandes autores clássicos».
O volume, com 11 narrativas, inclui a introdução de "O Deus na caverna", de G.K. Chesterton (Reino Unido, 1874-1936), "Presentes de Reis Magos", assinado por O. Henry (EUA, 1862-1910), "Noite de Natal", por Nikolai Gogol (Ucrânia, 1809-1952), e "Vanka", de Anton Tchekhov (Rússia, 1860-1904).
Entre os portugueses foram selecionados Raul Brandão (1867-1930), com "Natal dos pobres", Ramalho Ortigão (1836-1915), autor de "O Natal minhoto", Carlos Malheiro Dias (1875-1941), que escreveu "A prenda de Natal", e Eça de Queirós (1845-1900), com "Suave milagre".
A lista completa-se com "Conto do Natal" (Fialho de Almeida, 1857-1911), "As janeiras" (Brito Camacho, 1862-1934) e "Missa do galo" (Machado de Assis, Brasil, 1839-1908).
«Natal dos pobres! Natal amargo dos que não têm pão e se juntam friorentos em torno de um lume que não aquece; natal dos seres que a desgraça usou... O vinho enregela, o pão é duro, mas resta ainda este lume, que jamais se apaga: — Amanhã! Amanhã!...» (Raul Brandão, "Natal dos pobres").
«Não tínhamos compreendido ainda todo o sentido do Natal. Não nos tinham explicado suficientemente que o louro Menino Jesus que nos sorria no seu bercinho, tão descuidado, tão alegre, no meio do esplendor dos círios e do perfume das violetas, era o mesmo Deus descarnado e lívido, coroado de espinhos, alanceado no coração, pregado na cruz e exposto no altar.» (Ramalho Ortigão, "O Natal minhoto").
«Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo profeta, um rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do Reino de Deus, curando todos os males humanos. E, enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo de um decurião romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerasenos, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto que comentava os livros na sinagoga.» (Eça de Queirós, "Suave milagre").
«- Dorme, rapariga! Amanhã já tens as argolas nas orelhas... Por ’mor delas desandou o teu pai, sozinho na égua, por essa serra, que mete medo! Eram a consoada da filha. A colheita em pão e vinho fora de dar graças a Deus. Não havia a pequena de ficar sem as argolas por mais tempo. Logo ao clarear da manhã, o Manuel da Eira selara a égua, entalara o varapau debaixo da coxa, lembrado da quadrilha de Redemoinhos, e pusera-se a caminho para a feira de Lanhoso, prometendo estar de volta ao amortecer do sol, para consoar.» (Carlos Malheiro Dias, "A prenda de Natal").
«Há de passar talvez das onze horas. A noite afinal pôs-se serena, não bole vento, as solidões escutam... — é como se a Terra inteira estivesse à espreita de ouvir tocar o sino para a missa. Pela estrada que passa entre Vila de Frades e Vidigueira vem descendo uma velha arrumada ao seu bordão de pobrezinha. O rastejo dos passos dir-me-ia porventura a idade dela: o luaceiro entanto, nuverinhado em céu de bruma, apenas deixa aperceber a silhueta curvada para a terra, com um pedaço de manta sobre os ombros, o saco às costas, e as canelas sem meias, entrapadas em ligaduras repelentes. Ao pé da ponte, a mulher pára. Por detrás daqueles choupos, lá em baixo, à beira-rio, havia noutro tempo um forno de tijolo, agora pelo Inverno abandonado. Ela adianta-se, procura...» (Fialho de Almeida, "Conto de Natal").
«Amos e criados, destes os mais antigos na casa, os compadres, os afilhados, fraternizavam naquelas noites de festa; emparceiravam no jogo; comiam do mesmo prato; quase bebiam pelo mesmo copo; fumavam na mesma onça de tabaco. E não havia uma desatenção, uma falta de respeito, todos juntos e cada um. No seu lugar, a mesma alegria ingénua e franca iluminando todos os olhares, a mesma paz interior refletindo-se em todas as palavras e gestos.» (Brito Camacho, "As janeiras").
Edição: Rui Jorge Martins