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Pré-publicação: "A pergunta e a viagem - A propósito de vida espiritual"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Pré-publicação: "A pergunta e a viagem - A propósito de vida espiritual"

"A pergunta e a viagem - A propósito de vida espiritual", de Paolo Scquizzato, é um dos lançamentos que a Paulinas Editora vai realizar em julho, e de que o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura oferece dois excertos aos seus leitores.

"A pergunta. Dentro da vida espiritual", "A viagem. Um outro mundo ou um mundo outro?", "O caminho. Responder à chamada do amor" e "O estaleiro. Construirmo-nos no amor" são os títulos dos quatro capítulos que constituem a primeira secção do livro.

Na segunda parte da obra, "À escuta do Evangelho - Para uma espiritualidade da consciência", lemos esta frase: «Cada dia traz consigo a ocasião de viver para sempre, fazendo as coisas de sempre, mas o sábio sabe que pode vivê-las de modo "outro", diferente, embebendo-as de amor, a única possibilidade de arrancá-las à insignificância e ao esquecimento».

Paolo Scquizzato, de quem a Paulinas editou recentemente "O elogio da imperfeição", é um padre italiano pertencente à Sociedade dos Sacerdotes de São José Bento Cottolengo que se dedica à pregação e à formação espiritual, em particular, do laicado, além de dirigir a casa de espiritualidade Mater Unitatis de Druento, em Turim.

 

A pergunta e a viagem
Paolo Scquizzato

Responsáveis pelos irmãos

Dissemos há pouco que o primeiro momento da vida espiritual consiste em deixar-se alcançar por outrem, e isto é um momento gracioso, isto é, acontecido por graça – gratuitamente –, e não por mérito. Por isso, a vida torna-se vocação, uma resposta a esta chamada através da construção do eu. Mas ainda não é tudo. Este momento, que podemos definir como fundacional, evoca imediatamente um outro: de que modo respondemos ao Deus que se dirige a nós? Tornando-nos responsáveis. Mas responsáveis por quem? Pelos irmãos. Por isso, compreendamos que a vida espiritual não é abandonar a Terra, mas amar a Terra, amando os seres humanos que a habitam: sujar as mãos na história das relações, tornando-nos, deste modo, cada vez mais nós mesmos. Foi o amor, que é dom do Espírito, que nos alcançou, para formar Cristo em nós (cf. Gl 4,19) e, portanto, para nos identificarmos com o próprio Cristo: porque, depois de alcançados por Cristo, que é o amor do Pai, tornamo-nos Amor e, consequentemente, habilitados para o amor (cf. 2 Cor 5,14). Isto quer dizer que o nosso ser é crístico, embebido pelo Amor que nos alcançou; este é o nosso novo ser que nos constrói como criaturas novas.

O Evangelho é uma contínua memória do movimento que se instaura entre o dom recebido e a consequente resposta do cristão. Mas também sublinha fortemente de que tipo é esta resposta do ser humano movido pelo amor que o investiu; a isso chama-se responsabilidade. Respondemos a Deus que nos chamou e nos uniu a si, tornando-nos responsáveis pelos irmãos que estão ao nosso lado.

É curioso verificar isso mesmo nas cartas joaninas:

«Caríssimos, se Deus nos amou assim, também nós devemos amar-nos uns aos outros» (1Jo 4,11).

Foi com isto que ficámos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1Jo 3,16).

O que está escrito não é: «Se Deus nos amou tanto, também nós devemos amá-lo»; ou, então: «Ele deu a sua vida por nós; portanto, também nós devemos dar a vida por Ele»...

Mas respondemos verdadeiramente a Deus, amamos a Deus, quando cuidamos do outro. O caminho para voltar para Deus é muito longo, é um percurso de êxodo que passa no deserto da morte do nosso eu a favor do outro; não existem atalhos que nos possam levar imediatamente a Deus! Seria somente uma piedosa ilusão. Não há nenhum percurso até Deus senão através de um intermediário, o irmão. Por isso, Jesus afirma: «Em verdade vos digo: sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40).

«Precisamos de chegar juntos ao Bom Deus. Precisamos de nos apresentar juntos. De nos salvar juntos. Não podemos chegar até ao Bom Deus uns sem os outros. Será necessário voltarmos todos juntos à casa do nosso Pai [...]. O que diria Ele se chegássemos uns sem os outros? (Charles Péguy, Mistério da caridade de Joana d’Arc).

Atingidos pelo Espírito Santo – momento da graça – tornamo-nos pneumatóforos, portadores do Espírito. «Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro» (1Jo 4,19). Amados, somos capazes de sair de nós e começar a cuidar do outro. Por isso, a vida espiritual é uma vida ex-statica, extática, ou seja, vida vivida fora de si. Fora da hegemonia do eu, do autocentramento, da morte. Só pode viver uma vida espiritual autêntica quem foi libertado da escravidão daquele princípio mortífero que é o egoísmo. Isto é a salvação.

E é precisamente aqui que nasce a esperança. O ser espiritual é o ser da esperança.

Inabitados por este princípio do amor, podemos dizer, com a voz e com a vida: não quero resignar-me a ser mau.

É graças a este princípio bom que entrou em nós que adquirimos um olhar diferente sobre as coisas, sobre as relações, sobre os acontecimentos e sobre a história que nos acontece. E este olhar do coração faz com que tiremos o véu de cima do real; realiza-se uma espécie de revelação e descobrimos que aquilo que parecia verdadeiro é somente uma ficção, que aquilo a que chamávamos liberdade era apenas egoísmo, que aquilo a que chamávamos progresso era destruição da natureza e aquilo a que chamamos mercado é unicamente sujeição do homem ao dinheiro.

Por isso, o ser de esperança, que vive do Espírito, que leva uma autêntica vida interior, é aquele que permanece espetador – como todos – dos factos que acontecem, sejam belos ou sejam trágicos, mas sabe que isto ainda não é nada. O que conta não é o que acontece, mas de que modo o nosso eu responde a tudo isto, como respondemos a esta provocação da realidade, a este apelo. Nós seremos, construir-nos-emos consoante respondermos à realidade, se de algum modo nos tornarmos responsáveis por ela.

De que modo? Respondendo, precisamente, ao mal que acontece com aquele princípio de bem por que fomos atingidos: o ser espiritual é aquele que possui a liberdade, a inteligência e a confiança no outro, a capacidade de não julgar...

Deste modo, o que acontece não tem o poder de vencer-nos, mas traz precisamente consigo a possibilidade da realização, de uma vitória, de um renascimento: «Esta doença não é de morte, mas sim para a glória de Deus, manifestando-se por ela a glória do Filho de Deus» (Jo 11,4). O mal já não é a última palavra sobre a nossa vida.

«Alma minha, não penses
mal dele: não pode
fazer outra coisa.
E – verás! –
o Mal não vencerá.»
(David Maria Turoldo, Vedrai)

É aqui que se cumpre o renascimento do alto a que se refere Jesus no diálogo com Nicodemos (cf. Jo 3,1ss). Renascemos, sempre que nos empenhamos numa construção do eu, pondo em ação todas as potencialidades do ser adquiridas graças à in-abitação do Espírito, respondendo ao mal com o bem, à mentira com a verdade, à desonestidade com a honestidade.

 

À sombra da esperança

O ser espiritual é aquele que adquiriu, por graça, um olhar diferente sobre as coisas. Que vê as coisas do mundo com os olhos de Deus: transfiguradas.

«Crer num Deus quer dizer ver que os factos do mundo não são tudo.» (Ludwig Wittgenstein, Quaderni 1914-1916)

Vê as coisas como são, porque ele não é um desiludido, mas sabe que tudo é já in-abitado pelo bem, e que tudo espera simplesmente que a ressurreição de Cristo se cumpra totalmente, dentro de cada coisa.

A vida espiritual não é senão uma vida à sombra da esperança.

É a vida que sabe que Deus opera dentro da realidade e não do lado de fora. Ele não nos salvou do mal, da doença, do sofrimento e da morte; mas no mal, na doença, no sofrimento e na morte, fazendo de tudo isto lugares de encontro, de experiência dele. Lugares de salvação.

«No fundo das coisas vive uma frescura fontal, flamejante», escreve François Varillon (Traversate di un credente).

O ser espiritual intui dentro de cada situação, por mais angustiosa e dramática, que Deus está em ação, presença incandescente. No centro do real está alguma coisa como a exuberância, uma ebulição de energia, uma superabundância de vida.

«No fundo das coisas vive a frescura mais querida» (Gerard Manley Hopkins, La fresquezza più cara), pela qual, agora, cada coisa é objeto de consolação. O próprio ser é consolado por que vê, de um ou de outro modo, a relação íntima de tudo com a sua origem em Deus. «Como água de fonte, / broto da tua mão» (Gerard
Manley Hopkins).

Tudo brota de um amor, e tem no seu interior mais profundo um amor que já venceu o mundo. Deus está em ação nesta obra de devir, no interior de nós; deste modo acompanha o nosso devir a partir de dentro, conduzindo-nos à realização.

Por isso, dizendo com Flannery O’Connor, o ser humano é um ser «cheio de promessa» (A memoir of Mary Ann).

O ser espiritual não deixa que a vida se envenene com o sofrimento, com o limite, ou se sufoque com uma atmosfera impregnada pelo ódio. Ele sabe que tudo está simplesmente em devir, em construção, incompleto.

«O que, em geral, mina e envenena a nossa felicidade é sentir tão próximo o fundo e o fim de tudo aquilo que nos atrai: sofrimento das separações e do desgaste, angústia do tempo que passa, terror diante da fragilidade dos bens possuídos, desilusão de chegar tão rapidamente ao fim daquilo que somos e daquele que amamos.» (Pierre Teilhard de Chardin, Sobre a felicidade)

«Nós arrastaremos para trás, até ao fundo, incoerências e incompletudes: o essencial é ter encontrado o centro de unificação, Deus, e ter lealmente tentado, em vida, fazer com que Ele reine em nós, neste pequeno fragmento de ser. (Pierre Teilhard de Chardin, Génese de um pensamento)

Por isso, o cristão, o ser espiritual é quem olha para o mundo à espera de cumprimento cheio de promessa, comprometido em sentido escatológico.

Portanto, viver é «habitar na possibilidade» (Emily Dickinson, Poesia 657). A sede de infinito que o ser humano traz no seu coração, a tensão para o absoluto que o anima, não pode ser saciada. O ser humano está radicalmente aberto ao possível. Para o crente, a vida é abertura à possibilidade, que não depende das suas meras forças. (...)

O fundamental da vida espiritual nunca será a perfeição, o cumprimento, entendido em sentido moralístico, mas antes a incompletude. É precisamente graças a sermos continuamente uma obra em construção que a obra de Outro pode entrar. É no nosso limite que se cumpre o seu amor ilimitado. Será na nossa espera de realização que a promessa se cumprirá plenamente.

E, neste contínuo estaleiro aberto que é o homem, ele também sabe que tudo pode tornar-se material de construção, cada momento do quotidiano, por mais pequeno que seja. Por isso, é preciso não desperdiçar nada nem deitar fora nada da nossa história, da história do mundo e do homem.

Porque poderíamos aperceber-nos demasiado tarde de que estragamos alguma coisa.

«Alguns dias depois de ter tomado posse da sumptuosa casa de campo, Ernst Kazirra, ao voltar para casa, avistou ao longe um homem com uma caixa às costas que saía por uma portinha secundária do muro da cerca e punha a caixa num camião.

Não conseguiu chegar até ele antes de ele partir. Então, seguiu-o de automóvel. E o camião fez um longo percurso, até à extrema periferia da cidade, parando junto de um barranco.

Kazirra saiu do carro e foi ver. O desconhecido descarregou a caixa do camião e, dando alguns passos, largou-a no abismo que estava cheio de milhares e milhares de outras caixas iguais.

Aproximou-se do homem e perguntou-lhe:

– Vi-te trazer aquela caixa da minha quinta. O que estava dentro? E o que são todas estas caixas?

O homem olhou para ele e sorriu-se:

– Ainda tenho mais no camião para descarregar. Não sabes? São os dias.

– Que dias?

– Os teus dias.

– Os meus dias?

– Os teus dias perdidos. Os dias que perdeste. Esperavas por eles, não é verdade? Vieram. Que fizeste deles? Olha para eles, intactos, ainda cheios. E agora? Kazirra olhou. Formavam um montão imenso. Desceu lá abaixo pela escarpa e abriu um deles. Dentro, estava uma estrada de outono e, no fundo, Graziella, a sua namorada que se ia embora para sempre. E ele nem sequer chamava por ela.

Abriu um segundo. Era um quarto de hospital e, na cama, o seu irmão Giosuè que estava doente e esperava por ele. Mas ele andava em viagem por causa dos seus negócios.

Abriu também um terceiro. Na cancela da velha casa miserável estava Duk, o fiel mastim que esperava por ele, havia dois anos, já só pele e ossos. E ele nem sonhava em regressar.

Sentiu alguma coisa mesmo na boca do estômago. O descarregador estava direito à beira do barranco, imóvel como um justiceiro.

– Senhor! – gritou Kazirra. – Ouça! Deixe que leve comigo ao menos estes três dias. Suplico-lhe. Ao menos estes três. Eu sou rico. Dar-lhe-ei tudo o que quiser.

O descarregador fez um gesto com a mão direita, como para indicar um ponto inatingível, como para dizer que era demasiado tarde e que já não havia nenhum remédio. Depois, desapareceu no ar e, no mesmo instante, desapareceu também o gigantesco montão das caixas misteriosas. E a sombra da noite descia.» (Dino Buzzatti, I giorni perduti)

 

Publicado em 06.07.2016

 

 

 
Imagem Capa | D.R.
A vida espiritual não é abandonar a Terra, mas amar a Terra, amando os seres humanos que a habitam: sujar as mãos na história das relações, tornando-nos, deste modo, cada vez mais nós mesmos
O caminho para voltar para Deus é muito longo, é um percurso de êxodo que passa no deserto da morte do nosso eu a favor do outro; não existem atalhos que nos possam levar imediatamente a Deus! Seria somente uma piedosa ilusão
O ser de esperança, que vive do Espírito, que leva uma autêntica vida interior, é aquele que permanece espetador – como todos – dos factos que acontecem, sejam belos ou sejam trágicos, mas sabe que isto ainda não é nada. O que conta não é o que acontece, mas de que modo o nosso eu responde a tudo isto, como respondemos a esta provocação da realidade, a este apelo
Renascemos, sempre que nos empenhamos numa construção do eu, pondo em ação todas as potencialidades do ser adquiridas graças à in-abitação do Espírito, respondendo ao mal com o bem, à mentira com a verdade, à desonestidade com a honestidade
O ser espiritual intui dentro de cada situação, por mais angustiosa e dramática, que Deus está em ação, presença incandescente. No centro do real está alguma coisa como a exuberância, uma ebulição de energia, uma superabundância de vida
A sede de infinito que o ser humano traz no seu coração, a tensão para o absoluto que o anima, não pode ser saciada. O ser humano está radicalmente aberto ao possível. Para o crente, a vida é abertura à possibilidade, que não depende das suas meras forças.
O fundamental da vida espiritual nunca será a perfeição, o cumprimento, entendido em sentido moralístico, mas antes a incompletude. É precisamente graças a sermos continuamente uma obra em construção que a obra de Outro pode entrar. É no nosso limite que se cumpre o seu amor ilimitado. Será na nossa espera de realização que a promessa se cumprirá plenamente
Os teus dias perdidos. Os dias que perdeste. Esperavas por eles, não é verdade? Vieram. Que fizeste deles? Olha para eles, intactos, ainda cheios. E agora? Kazirra olhou. Formavam um montão imenso. Desceu lá abaixo pela escarpa e abriu um deles. Dentro, estava uma estrada de outono e, no fundo, Graziella, a sua namorada que se ia embora para sempre. E ele nem sequer chamava por ela
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