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A paixão de Jacinta

A paixão de Jacinta

Imagem Santa Jacinta (det.) | Sílvia Patrício | Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, Fátima

Muito se escreveu, se escreve (aqui…) e se escreverá sobre Fátima: mistério/não-mistério, realidade/ilusão/embuste, coisa sociológica, coisa psicológica/psicopatológica, coisa de incómoda religiosidade popular, coisa teológica, entre muitas outras formas perspetivas.

Há, por exemplo, quem veja, independentemente do centro focal de realidade em que se situa, na mensagem de Fátima, nada mais ou pouco mais do que uma defesa do sofrimento. Do sofrimento como única forma redentora – posição apologética que não é exclusiva do âmbito religioso, em seu sentido comum.

Ora, se se ler atentamente o documento matriz do acontecimento de Fátima, no que é, não no que cada um pensa que deveria ser ou no que cada um lá projeta em termos de expetativas, ilusões ou frustrações, a mensagem mais importante que aí se encontra não é negativa, mas é, antes, fundamentalmente positiva, e positiva ao nível do que, em absoluto, mais importa ao ser humano, ou, se se quiser mesmo não brincar com a grandeza do sentido que nos ergue, a todos nós, como propriamente humanos, ao nível da única possibilidade que humanamente interessa – postas as coisas em forma facilmente compreensível: em absoluto, salvo-me ou não?

Ora, como quem já passou pela experiência da vizinhança com a possibilidade do nada (vivida, não apenas falsamente imaginada) sabe, não há salvação alguma sem perenificação pessoal: o mais são formas de fuga a uma angústia – de dimensão ontológica – esmagadora, que é essa que se vive excruciantemente perante a evidência da possibilidade do nada de si próprio.



Jacinta não pensa nos pecadores como ocasião de pensar no mal, mas como ocasião de pensar no bem: é o bem dos pecadores que quer, como continuidade, para ela lógica e necessária, do bem de Deus e da sua Mensageira



O nada não salva, nem sequer a estultice dos que pensam que o podem encarar com filtros noéticos vários, todos ilusórios: não há salvações na forma de pó cósmico ou mudando de «personalidade» ou na forma da memória dos «que ficam» (e que vão todos seguir o mesmo caminho), e a aniquilação não salva coisa alguma, apenas varre para o nada a, assim, absolutamente insignificante existência humana. Apenas a possibilidade de ato próprio e irredutível sem limite pode constituir isso a que se chama «salvação» (como é evidente, não é a designação que interessa, mas isso para que possivelmente aponta; e aponta na e como modo de experiência humana).

É esta questão – a questão da salvação do ser humano, da sua possibilidade irrestrita – que constitui o fundamental da mensagem de Fátima, folclores vários arredados.

Todavia, as testemunhas não percebiam coisa alguma de tais «metafísicas», como podem, então, ser veículo adequado de tal «questão»?

A capacidade metafísica é congénita ao ser humano, qualquer, não depende da geografia em que se nasce ou da camada social em que se vem ao ser: as crianças são capazes da intuição do que está em causa, ouvindo atentamente o que os mensageiros têm para lhes dizer, na forma como estes últimos o fizeram, aliás, irrelevante. Se fosse por «sms», hoje, o absoluto semântico do que está em causa não sofreria qualquer beliscadura: nunca é o meio de comunicação que fundamentalmente importa, mas a inteligência dos comunicantes.



O que em Fátima se lembra é que a minha estupidez, a minha incapacidade de amar, pode ser mitigada, talvez mesmo metamorfoseada pelo amor de quem por mim amar, assim me amando



O exemplo de inteligência profunda do que de fundamental estava em causa na mensagem é-nos dado por Jacinta. Ouçamos, interiormente, o que nos relata Lúcia: «A Jacinta continuava sentada na sua pedra, com ar de pensativa e perguntou: – Aquela Senhora disse também que iam muitas almas para o inferno. E o que é o inferno? […] O que mais impressionou a Jacinta foi a eternidade. […] – E aquela gente que lá está a arder não morre? E não se faz em cinza? E se a gente rezar muito por os pecadores, Nosso Senhor livra-os de lá? E com os sacrifícios também? Coitadinhos! Havemos de rezar e fazer muitos sacrifícios por eles!» (1) O texto prossegue narrando a extrema dedicação de Jacinta à causa da salvação dos pecadores. A certo ponto, o texto, depois de elencar o que Jacinta relata como o conteúdo do seu pensamento, diz: «Gosto muito de pensar.» (2)

É com grande prazer que lemos esta breve expressão de gosto de alguém que literalmente se consumia em sacrifício pela salvação dos pecadores: o gozo de pensar, de pensar no bem. Há, nisto, uma espantosa ironia de santidade, de quem sabe muito bem o que é bom: pensar, sim, pensar «em Nosso Senhor, Nossa Senhora, nos pecadores […]». (3)

Note-se a série invocada, ternária, e a sua qualidade ontológica: Deus, a Virgem, os pecadores. No contexto da ação de Jacinta, o que temos nesta afirmação não é qualificável como: Deus – bem; Maria – bem; pecadores – mal. Quem assim pensar – e faz bem em pensar, um dia pode atingir a inteligência de uma Jacinta, praticando – pensa mal: o que Jacinta está a dizer é: o bem em Deus, o bem em Maria, o bem nos pecadores.

Jacinta não pensa nos pecadores como ocasião de pensar no mal, mas como ocasião de pensar no bem: é o bem dos pecadores que quer, como continuidade, para ela lógica e necessária, do bem de Deus e da sua Mensageira: a mensagem que Maria transporta, em nome de Deus, não é a da condenação dos pecadores, mas a da possibilidade da sua salvação.



É para o bem de esses que Maria se mostrou em Fátima, pelo bem dos que não têm quem os ame, no que é o humano inferno da humana maldade nossa de cada dia – essa que adoramos em vez de adorarmos Deus



Repete-se, para benefício dos adoradores do mal: a mensagem de Maria em Fátima não é uma mensagem de condenação, é uma mensagem de salvação: Maria não quer enviar os pecadores para o inferno, quer que a humanidade colabore com a humanidade para a salvação da humanidade.

É este o papel que Jacinta tão bem compreende e incarna agindo e pensando: pensa, pois pensa, e pensar permite até que se perceba, no esplendor da simplicidade da inteligência dos pequeninos, a mensagem que os outros, os adoradores do inferno, não querem compreender, talvez porque, ao contrário de Jacinta, não pensem no que é bom pensar-se: no bem-Deus, no bem-Maria, no bem dos pecadores, o que ainda lhes resta e o que lhes é, ainda, possível, se houver alguma Jacinta que os ame ao ponto de dar toda a sua vida, medularmente, num modo apenas comparável com o teórico Job, pelo bem dos que precisam mais de ser amados: é para o bem de esses que Maria se mostrou em Fátima, pelo bem dos que não têm quem os ame, no que é o humano inferno da humana maldade nossa de cada dia – essa que adoramos em vez de adorarmos Deus.

Jacinta – que pedaço de terna carne feita humana-divina inteligência do fundamental – é o elo de ligação entre os desamados por nós e Deus, o mesmo Deus que não substitui com o seu amor a nossa preguiça de amar.

Que espanto perceber-se o que significa em termos de perversidade a impossibilidade de alguém sair do inferno, sem poder, sequer aniquilar-se em cinza, por ausência de amor. Mas o inferno é o absoluto da ausência de amor, que mede o absoluto da distância ontológica entre mim e Deus.

O que em Fátima se lembra é que a minha estupidez, a minha incapacidade de amar, pode ser mitigada, talvez mesmo metamorfoseada pelo amor de quem por mim amar, assim me amando.

É este o sentido profundo do sacrifício de que Jacinta é humano paradigma em carne, como Job foi paradigma teórico: o ato de amor como forma abnegada de salvação. Sem mais. O mais «é do maligno», isto é, meu, quando não amo.



(1) IRMÃ MARIA LÚCIA DO CORAÇÃO IMACULADO DE MARIA, Memórias da Irmã Lúcia, compilação do Pe. Luís Kondor, SVD, «Introdução» e notas do Pe. Dr. Joaquín M. Alonso, CMF, Postulação, Fátima, 1978, p. 28.
(2) Ibidem, p. 41.
(3) Ibidem.



 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 13.05.2017

 

 
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