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A oração e a música que forma um mundo

Imagem François Nicolas | Seminário Conciliar de Braga | 15.5.2016 | Fotografia: Tiago Silva | D.R.

A oração e a música que forma um mundo

A música forma um mundo (1). Quem o diz é François Nicolas, compositor francês, professor associado da École Normale Supérieure de Paris desde 2003, que esteve à conversa com a comunidade do Seminário Conciliar de Braga, no dia de Pentecostes.

Ouvir música depende muito da qualidade da escuta. Mas não é esta que faz a música. Porque ela existe primeiro, feita de sons e silêncios. A música dá-se no “ser escutada”. Oferece-se numa linguagem, que também é escrita, a mesma que nos vem desde a notação desenvolvida pelo monge italiano Guido D’Arezzo (992-1050), que criou as notas como hoje são conhecidas. Escrita que tem uma lógica, um pensamento próprio. É uma linguagem cuja inteligência conserva muitas analogias com a inteligência da fé, desde há muito desenvolvidas pelas escolas de espiritualidade e os escritores cristãos.

Após esta abertura, promissora para quem aprecia e estuda música no Seminário, François Nicolas apresentou, em sumário, a Tetralogia do Mundo-Música, sua obra recente, escrita em 4 volumes: A obra musical e a sua escuta (vol. I, 2014); O mundo-Música e o seu solfejo (vol. II, 2014); O músico e a sua intelectualidade musical (vol. III, 2015); As ressonâncias do mundo-Música (vol. IV, 2016).

Centrando-se de seguida na música e nas relações de parentesco analógico com a dinâmica da oração, dizia: «É a música que faz o músico»; é ela quem o constitui. A música pré-existe-lhe. Porque há música é que pode haver músicos. O mesmo se passa com a oração e os orantes. Ou seja, é a oração que faz o fiel, o orante. Crente é aquele que reza. Por conseguinte, é a oração que distingue o crente do não crente. Como a música constitui o músico, assim a oração constitui o fiel. É porque existe a oração é que existem fiéis. Notemos bem: a oração antes de ser minha é algo que diz respeito a Deus. Antes de ser minha, a oração é algo que respeita a Deus: primeiro, Deus reza ao homem; depois, a nossa oração é resposta a Deus. A vida de Deus é oração, vida trinitária. E rezar é participar da vida íntima de Deus. Neste sentido, o músico não começa a música; antes, continua-a. O fiel não começa a oração, mas dá-lhe continuidade na tradição que lhe pré-existe, no sentido do mistério da comunhão dos santos.

Ao contrário do que por vezes se pensa, a música não existe para revelar as emoções subjetivas dos músicos, ainda que isso se possa notar, mas para transfigurar as características pessoais em algo maior. Nisto se assemelha à oração e à dinâmica dos sacramentos, porque o exercício pessoal é integrado num coletivo, na comunidade, em algo maior.

Para que haja música e, bem assim, oração, é necessário o recolhimento: preparação através da interiorização. No interior de si próprio acede-se ao lugar que dá acesso à música. Melhor se compreende isto na imagem da cebola, sem caroço, cujas cascas, retiradas umas depois das outras, dão acesso a um ‘vazio’. Ora é precisamente nesse ‘vazio’, no interior de nós próprios, que se acede à música. Um instrumento de sopro, com uma abertura no princípio e outra no fim, mostra-nos esse processo: o sopro entra por um lado e sai modulado no outro. A música é isto. O intérprete recolhe-se e a música sai transfigurada. Rezar é nisto muito semelhante: é ser-se atravessado pela oração, deixar-se modular por aquilo que nos atravessa, fazer bilhar a oração que nos percorre. Recolhemo-nos para sermos atravessados.

Eis porque a oração é um misto de atividade e passividade. A dimensão principal é a passividade ativa e não o contrário. É modulação da passividade que atravessa um sujeito, o fiel. Daí a recetividade da oração que nos modula. Desafio da passividade ativa é brilhar e não projetar. As colunas é que projetam o som. Os instrumentos musicais fazem brilhar o som, brilhar em todos os sentidos, como o sol. E neste brilho sonoro, espaço sonoro, incorporam-se os ouvintes. A música não é a transmissão de uma mensagem, mas a experiência participada pelos ouvintes numa mensagem criada. Do mesmo modo a oração visa todo o mundo, é sempre por todos. Não é uma projeção sonora, mas radial. Não apaga o modulador, o orante; antes, vivifica o seu orar radiante. Assim é a música: uma oferta para todos os que nela se querem incorporar, algo que é equivalente na oração.

Além do recolhimento e do brilho, faz falta silêncio que, na música, não é negativo nem carência de som, mas algo afirmativo. É a maneira de afirmar uma articulação no discurso. Por seu turno, o suspiro é uma forma de afirmar um enunciado. Na oração sucede o mesmo: o silêncio não é negatividade, mas afirmação. A oração silenciosa é contemplação ou adoração.

Na parte final, François Nicolas teve ainda tempo para enunciar um discurso, que seria longo e para o qual não se sentia tão autorizado, no qual procurou relacionar a música com a pregação. Serviram-lhe para tal várias referências de teólogos conhecidos, como Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, Hans Urs von Balthasar, Karl Rahner, entre outros. Preferia pensar a pregação no sentido em que a pensava Karl Barth, isto é, entre duas grandes orações: primeira, a invocação do Espírito; segunda, a ação de graças. Na música, dizia, acontece algo de parecido, como tão bem testemunhou César Franck na sua obra:prelúdio coral e fuga (FW 21).

Por fim, sem se demorar em questões que deixou abertas e são objeto de diferentes sensibilidades, como que para povoar as nossas referências musicais nas suas analogias com a oração, deixou-nos com Mozart, compositor da oração; Bach, tocado pela ação de graças. E, depois da incorporação na melodia Modern Psalm, op. 50c de Arnold Schoenberg, fez-nos pensar que, como ele, a nossa vida nas suas diferentes modulações poderia ser uma história de oração. Uma vida orante, que se experimenta na música. Deixou-nos a pensar com Schoenberg: «Quem sou eu para acreditar que a minha oração possa ser necessária?».

 




 

(1) François Nicolas utiliza o conceito “mundo” referindo-o ao seu sentido matemático, em particular dentro da topologia, e ao seu sentido filosófico, em particular na obra de Alain Badiou.

 

Joaquim Félix
Seminário Conciliar de Braga, 15.05.2016
Publicado em 18.05.2016

 

 

 
Imagem François Nicolas | Seminário Conciliar de Braga | 15.5.2016 | Fotografia: Tiago Silva | D.R.
Ao contrário do que por vezes se pensa, a música não existe para revelar as emoções subjetivas dos músicos, ainda que isso se possa notar, mas para transfigurar as características pessoais em algo maior. Nisto se assemelha à oração e à dinâmica dos sacramentos, porque o exercício pessoal é integrado num coletivo, na comunidade, em algo maior
A música não é a transmissão de uma mensagem, mas a experiência participada pelos ouvintes numa mensagem criada. Do mesmo modo a oração visa todo o mundo, é sempre por todos. Não é uma projeção sonora, mas radial. Não apaga o modulador, o orante; antes, vivifica o seu orar radiante
Além do recolhimento e do brilho, faz falta silêncio que, na música, não é negativo nem carência de som, mas algo afirmativo. É a maneira de afirmar uma articulação no discurso. Por seu turno, o suspiro é uma forma de afirmar um enunciado. Na oração sucede o mesmo: o silêncio não é negatividade, mas afirmação
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