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A fome injusta como desequilíbrio ecológico

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A fome injusta como desequilíbrio ecológico

«Hoje, crentes e não crentes estão de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos. Para os crentes, isto torna-se uma questão de fidelidade ao Criador, porque Deus criou o mundo para todos. Por conseguinte, toda a abordagem ecológica deve integrar uma perspetiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos» (Papa Francisco, Laudato Si' 93).

A fome, no seu sentido mais imediato, mais comum, consiste numa realidade fisiológica, do mundo biológico. É, antes de mais nada, a ausência do alimento necessário ao funcionamento regular do organismo. Não é uma doença, mas funciona como tal. Não se cura com medicamentos, mas com a ingestão das necessárias doses proteico-calóricas.

Neste sentido, qualquer ser vivo pode morrer de inanição. Até uma planta, embora não costumemos associar a palavra fome ao definhar de um vegetal por falta de alimento. Talvez porque lhe falte consciência, meramente sensível, do seu estado. Fome pode tê-la também um animal. Mas não é o mesmo um animal com fome ou uma pessoa com fome. No homem e na mulher, a fome abandona o plano meramente fisiológico e sensitivo para envolver toda a dimensão pessoal. Há, pois, uma fome especificamente humana.

Um animal pode morrer de fome, mas nunca se conduzirá conscientemente a essa situação. Na pessoa, a fome pode ser voluntária, intencional. Uma pessoa pode privar-se do alimento e deixar-se sucumbir porque decidiu fazê-lo. Pelas razões mais nobres ou por motivos débeis, que levam por vezes à ruína psíquica. Um homem ou uma mulher podem jejuar ou fazer dieta, coisa que um animal nunca fará. E greve da fome, como modalidade extrema de protesto e de luta.

Mas voltemos à fome não procurada, à fome humana sofrida. Ainda aqui se deve continuar a dizer que é especificamente pessoal.

A fome humana não representa apenas a ausência de nutrição, a subnutrição, a necessidade objetiva, fisiológica, de alimento. Numa pessoa, a fome nunca se desliga do faminto, da sua subjetividade individual. Envolve a consciência sensível e dolorosa de que se está privado do alimento mínimo indispensável para a sobrevivência biológica ou para um limiar digno de bem estar. A fome afeta o coração da pessoa, não apenas o seu corpo e o sentir imediatamente ligado a ele.

Contudo, não é este o âmago do problema que nos ocupa.

A fome, o problema da fome, não se esgota numa dimensão pessoal individual. Insere-se no plano comunitário das relações interpessoais.

Antes de mais, porque nunca existiu uma pessoa sozinha, isolada. Essa não seria pessoa, não seria imagem de Deus, porque lhe faltaria a comunhão, a possibilidade de dar-se a alguém igual e distinto dela, a outro, a outro-eu.

Mas ainda que, por hipótese absurda, tivesse podido existir um homem único ou uma mulher única, a fome nunca chegaria a ultrapassar, para essa pessoa, o mero nível biológico, a mera ausência do alimento necessário para continuar a viver, juntamente com a revolta do instinto de sobrevivência e a tristeza natural associada à morte iminente. Mais nada.

A fome transforma-se em problema, em problema especificamente pessoal, quando — e é sempre o caso — há mais de uma pessoa neste mundo e a uma delas falta aquilo que a outra tem a mais. A fome é problema quando se traduz na falta do alimento, não apenas necessário para sobreviver, mas devido. I.e.: alguém tem fome porque há outros que não repartem com ela o alimento que existe na terra em abundância suficiente para chegar a todos. Há quem coma tudo e não deixe nada, como os 'vampiros' da conhecida canção de Zeca Afonso.

Nesse caso — que é sempre o caso, repito, ao menos se olharmos o mundo na sua globalidade — a fome ultrapassa o plano meramente biológico, o próprio sentimento de privação de algo necessário para a sobrevivência digna; torna-se um problema de justiça. De injustiça. O mesmo é dizer: um problema ético e um problema jurídico também.

O faminto carece de um bem que é seu, de um bem a que tem direito, e que lhe é negado. Independentemente de disso ter consciência. Se a tem, a fome passa a ser duplamente dolorosa: dor fisiológica, grito de um corpo incapaz de conservar a sua vitalidade; e dor moral e afetiva, tristeza e impotência perante a injusta, a falta de cuidado a que os outros o votam.

Neste ponto e em muitos casos, a fome difere da doença e torna-se mais insuportável. Porque não é fatídica, se assim me posso exprimir. Porque era evitável através de ações humanas justas.

Repito: ainda que não haja, por parte do sujeito com fome, consciência da injustiça a que o sujeitam, esta — a injustiça — existe.

Olhemos agora a fome pelo outro lado — pelo nosso lado. Nosso, o de quem não tem fome. Nosso, o daqueles de quem se espera um contributo para a resolução do problema. Nosso, o de todas as pessoas conscientes de uma verdade simples, mas pouco popular: o que uns têm a mais pertence aos outros.

Não vou dizer, como Proudhon, que a propriedade é um roubo. Não o digo pela simples razão de que Proudhon generaliza, exagera. Mas posso, corrigindo-o um pouco, afirmar que todo o bem próprio supérfluo é um roubo. Inconsciente, porventura, mas nem por isso menos real. Se houver, entre os leitores, juristas, compreenderão que em rigor não é de roubo que deve falar-se neste caso, nem sequer de furto, mas sim de abuso de confiança: alguém a quem foi confiada coisa alheia passa a usá-la, em momento dado, como própria. O excedente que eu porventura tenha não me pertence, se há gente a quem o mínimo falta. Retê-lo, usá-lo como próprio, significa ter uma quota parte de responsabilidade na desigual repartição dos bens disponíveis, que faz com que não chegue a todos o necessário.

(Abro um parêntesis para notar que o problema da fome, nesta aceção, equivale exatamente ao problema da pobreza em geral).

Se a fome fosse um problema técnico, provavelmente não valeria a pena proporcionar a cada pessoa a oportunidade de se desprender de um grão de arroz que tem a mais, dar-se ao trabalho de juntar os grãos todos, de os armazenar para depois distribuí-los, em pequenos sacos, por alguns dos que precisam. Isso não erradica a fome do mundo. Em termos de resultado, representará uma gota de água no oceano da desnutrição.

Mas o problema da fome pessoal, da fome que tem na base a injustiça — talvez por omissão — de tanta gente, não se reduz a uma questão técnica, de maior ou menor eficácia. É um problema ético.

Nesta perspetiva, matar a fome pessoal é mais do que introduzir no organismo de alguém subalimentado uma dose proteico-calórica suficiente para que recupere a energia necessária para continuar a viver. Matar a fome injusta passa por ações pessoais de justiça. Ações tão variadas quanto a inventiva humana é capaz de gerar. Mais ou menos próximas, mais ou menos distantes do ato material de dar de comer. Levadas a cabo isoladamente ou em colaboração formal ou informal com muitos outros. No âmbito de um bairro, de uma cidade ou país, ou à escala planetária, supranacional, governamental ou não.

Em suma, a fome pessoal radica na injustiça e só ações de justiça se mostram capazes de a acalmar. De justiça, sublinho, não de caridade, de misericórdia ou de filantropia. De justiça: devolvendo ao faminto o alimento que é dele.

Estas ações, a acreditar no que diz Francisco na Encíclica Laudato Si', configuram genuínos comportamentos de responsabilidade ecológica, na medida em que, defende o Papa, «não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental» (LS 139).

 

Cristina Líbano Monteiro
Universidade de Coimbra
In "Observatório da Cultura", n.º 22 (novembro 2015)
Publicado em 15.11.2015 | Atualizado em 30.04.2023

 

 

 
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O faminto carece de um bem que é seu, de um bem a que tem direito, e que lhe é negado. Independentemente de disso ter consciência. Se a tem, a fome passa a ser duplamente dolorosa: dor fisiológica, grito de um corpo incapaz de conservar a sua vitalidade; e dor moral e afetiva, tristeza e impotência perante a injusta, a falta de cuidado a que os outros o votam
Em suma, a fome pessoal radica na injustiça e só ações de justiça se mostram capazes de a acalmar. De justiça, sublinho, não de caridade, de misericórdia ou de filantropia. De justiça: devolvendo ao faminto o alimento que é dele
Estas ações de justiça, a acreditar no que diz Francisco na Encíclica Laudato Si', configuram genuínos comportamentos de responsabilidade ecológica, na medida em que, defende o Papa, «não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental»
O faminto carece de um bem que é seu, de um bem a que tem direito, e que lhe é negado. Independentemente de disso ter consciência. Se a tem, a fome passa a ser duplamente dolorosa: dor fisiológica, grito de um corpo incapaz de conservar a sua vitalidade; e dor moral e afetiva, tristeza e impotência perante a injusta, a falta de cuidado a que os outros o votam
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