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Jesus, o homem que só Deus podia dar-nos

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Imagem "A Natividade mística" (det.) | Sandro Botticelli | National Gallery, Londres, Inglaterra

O quarto domingo do Advento (Lucas 1, 26-38) narra-nos a ação de Deus numa mulher, Maria de Nazaré: «Grandes coisas fez nela o Poderoso». O famosíssimo excerto da anunciação do anjo a Maria, celebrado por inúmeras obras de arte, apresenta o acontecimento que abre o caminho à vinda do Messias na carne: a sua conceção, o início da sua vida mortal. E tudo ocorre como cumprimento pontual de uma palavra de Deus, porque Ele realiza sempre as suas promessas.

A narrativa abre-se com a indicação precisa «ao sexto mês», o que constitui a ligação com o anúncio do anjo a Zacarias (cf. Lucas 1, 5-25). Quando Isabel tem dentro do seu ventre, há seis meses, o menino anunciado pelo anjo, João Batista, o mesmo «anjo Gabriel é mandado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré». Foi enviado a um sacerdote em Jerusalém, no templo, na hora da oferta do incenso; agora é enviado à periferia da Terra Santa, a uma cidade minúscula, a uma região espúria, habitada por muitos pagãos e por isso vista com desconfiança. «De Nazaré pode vir alguma coisa de bom?» (João 1, 46), perguntará, não por acaso, Natanael.

O mensageiro é Gabriel, que no livro de Daniel anunciava a unção de um Santo dos santos ao fim de 70 semanas, a presença de um Ungido de Deus, de um Messias (cf. Dn 9, 24-27). Sim, par Lucas o tempo das 70 semanas cumpriu-se, acabou a espera, chegou a plenitude dos tempos. O anjo Gabriel é portanto enviado a uma mulher, Maria, «virgem, noiva de José, um homem da casa de David», estirpe da qual devia vir o Messias.



O anjo, então, tranquiliza-a com as palavras centrais desta página, a ler e reler, sem nunca parar: «Não temas, Maria, porque encontraste graça junto de Deus». Quantas vezes Deus se dirige assim aos seus chamados, infundindo-lhes paz, força e coragem!



Entrando na sua casa, Gabriel diz-lhe: «Alegra-te, tu que foste repleta da graça». Maria é saudada com as palavras dirigidas pelos profetas ao povo de Deus, à filha de Sião, isto é, trata-se de um convite à alegria escatológica [do final dos tempos]: «Alegra-te, porque estou para te anunciar a boa notícia, o Evangelho». É definida como “kecharitoméne”, palavra grega que significa mulher repleta da graça, totalmente sob o influzo da “cháris”, da benevolência gratuita e eficaz de Deus. Por isso o anjo [que significa mensageiro] acrescenta: «O Senhor está contigo», saudação que ecoa e reatualiza aquelas dirigidas à filha de Sião, personificação da comunidade dos crentes da antiga aliança, dos pobres que esperavam apenas no Senhor. EM particular, as suas palavras recordam dois oráculos:

«Alegra-te, filha de Sião (…).
Rei de Israel é o Senhor no meio de ti,
não voltarás a temer desventura alguma.
Não temer, Sião (…)
O Senhor, teu Deus, no meio de ti
é um salvador poderoso» (Sofonias 3, 14-17).

«Alegra-te, exulta, filha de Sião,
Porque, eis, eu venho habitar no meio de ti.
Oráculo do Senhor» (Zacarias 2, 14).

Maria fica profundamente perturbada, quer pela visita quer pelo conteúdo da mensagem, que não sabe decifrar. Ela pensa, medita, interroga-se, quer discernir aquela palavra. É a reação tantas vezes testemunhada nas narrativas das anunciações: a vinda de Deus, a escuta da sua palavra endereçada a um crente perturba, causa o temor de Deus, essa sensação de pequenez, de humildade, de indignidade, que conduz à adoração. Como já em Zacarias (cf. Lucas 1, 12), também Maria fica transtornada pela imprevista vinda do Senhor e não sabe onde a conduzirá este encontro…



Que paradoxo: uma declaração solene, um grande anúncio feito a uma jovem e humilde rapariga de um desconhecido vilarejo da Galileia!



O anjo, então, tranquiliza-a com as palavras centrais desta página, a ler e reler, sem nunca parar: «Não temas, Maria, porque encontraste graça junto de Deus». Quantas vezes Deus se dirige assim aos seus chamados, infundindo-lhes paz, força e coragem! «Eis que conceberás um filho, dá-lo-ás à luz e chamar-lhe-ás Jesus. Será grande e será chamado Filho do Altíssimo; o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de David seu pai e reinará para sempre sobre a casa de Jacob e o seu Reino não terá fim». Quem é este filho? Aquele que Deus tinha prometido através do profeta Natan a David (cf. 2 Samuel 7, 8-16). Assim cumpre-se a profecia, realiza-se finalmente, e na plenitude dos tempos o filho de David, mas também Filho do Altíssimo, nasce de Maria: o seu Reino não terá fim, como repetimos ainda hoje no Credo. A espera do Messias, alimentada durante gerações e gerações por crentes e testemunhada aos tempos de Jesus, sobretudo pela comunidade essénia de Qumran, chega ao seu termo. Que paradoxo: uma declaração solene, um grande anúncio feito a uma jovem e humilde rapariga de um desconhecido vilarejo da Galileia! Jesus será o nome do nascituro: Jehoshu’a, “o Senhor salva”. A Maria cabe impor-lhe este nome: não serão nem ela nem José a escolhê-lo, mas o Nome é lhe dado pelo próprio Deus através do anjo, porque ele é vocação, é missão, encerra a identidade de Jesus, Filho do Altíssimo, Filho de Deus, um homem que só Deus podia dar-nos.

Este anúncio não é de fácil compreensão para Maria: é uma mulher de fé, mas a fé interroga sempre, põe em questão. Não pede sinais, não duvida, como Zacarias, que precisamente por isso ficou afónico, incapaz de falar para dar testemunho a Deus (cf. Lucas 1, 8-20), mas interroga: «Com acontecerá isto, dado que não conheço homem?». Atenção, o evangelista não se interessa pela psicologia de Maria, mas quer revelar a identidade de Jesus através do modo de conceção do menino. Sim, Maria é virgem, é uma condição que impede o nascimento de um filho. Muitas mulheres no Antigo Testamento geraram um filho graças à intervenção de Deus, apesar da sua condição de esterilidade: Sara, Ana… até Isabel. Havia uma impossibilidade humana de gerar, mas o poder de Deus revelado no anúncio do nascimento tinha tornado fecundo o ventre daquela estéreis. E assim, depois de se unirem ao seu cônjuge, mesmo que estéreis, tinham concebido e dado à luz pela graça, pela vontade de Deus. Esses filhos só Deus podia dar-lhes…



Eis o grande mistério da incarnação, da humanização de Deus: Maria de Nazaré é o lugar em que o Deus invisível se fez visível, o sítio onde o Deus que não pode ser visto se fez o homem que narra Deus, o Deus connosco.



Em Maria isto é ainda mais evidente. Esta jovem é virgem, não conhece homem, não se uniu ao noivo José (Mateus dirá que se «encontrou grávida antes que fossem viver juntos», Mt 1, 18), e por isso não pode absolutamente tornar-se mãe. Maria não pede ao anjo nem garantias nem sinais, mas interroga o mistério de Deus para que lhe seja indicado o caminho da fé, a estrada da obediência. Desta forma procura somente responder ao chamamento de Deus. Continua a ser uma mulher de fé, isto é, uma mulher de escuta: tem verdadeiramente «um coração capaz de escutar» (1 Reis 3, 9), que acolhe a Palavra do Senhor, guarda-a, procura interpretá-la, pensá-la, meditá-la (cf. Lucas 2, 19.51). Com a sua fé interroga o intelecto, o que compreendeu.

O anjo, então, revela-lhe: «O Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Altíssimo cobrir-te-á com a sua sombra». O Espírito cumprirá o que é impossível aos humanos mas possível a Deus. É Ele o protagonista da nova criação: aquele que na criação do mundo pairava sobre o informe e o vazio (cf. Génesis 1, 2) descerá ao útero vazio de Maria e dará início à nova criação. O Espírito, potência eficaz de Deus, a sua Presença que residia sobre o monte Sinai e no Santo dos santos, testemunhada pela nuvem que fazia sombra, irá pôr a sua morada em Maria, a qual entrará na sombra do poder de Deus. O Espírito descerá sobre Maria, ao seu ventre virginal: e eis que a Virgem conceberá o Filho de Deus, o Santo! Assim, e só assim, é possível narrar a filiação de Jesus de Deus e de Maria sua mãe, desse Filho que só Deus podia dar à humanidade.

Deus, o celeste, fez-se terrestre;
Deus, o eterno, fez-se mortal;
Deus, o omnipotente, fez-se frágil;
Deus, o três vezes Santo, fez-se Emanuel, Deus connosco (cf. Isaías 7, 14; Mateus 1, 23);
Deus, que é Deus, fez-se homem.



Não nos esqueçamos de que a geração de Jesus por parte de Maria é antes de tudo um acontecimento espiritual, como Lucas nos recorda num excerto só atestado no seu Evangelho



Eis o grande mistério da incarnação, da humanização de Deus: Maria de Nazaré é o lugar em que o Deus invisível se fez visível, o sítio onde o Deus que não pode ser visto se fez o homem que narra Deus, o Deus connosco. Por fim, Gabriel anuncia a Maria um sinal: «Isabel, tua parente, na sua velhice concebeu também ela um filho e este é o sexto mês para ela, que era dita estéril: nada é impossível a Deus». Perante esta posterior revelação do anjo, Maria diz simplesmente: «Eis-me!», ou seja, pronuncia o seu «sim» incondicional. Às palavras abundantes do anjo, replica mal rompendo o silêncio: «Eis-me, sou a serva do Senhor. Aconteça para mim segundo a tua palavra». Maria continua a ser a mostrar-se mulher da fé, mulher da escuta, e revela-se também mulher da obediência: não é uma mãe que se faz discípula mas, precisamente porque é discípula, é chamada a ser mãe, e mãe do Messias.

Define-se serva do Senhor, coloca-se radical e totalmente ao seu serviço. Maria é a serva que diz o seu «ámen», o seu “fiat” [faça-se], acolhendo a vocação que Deus lhe dirigiu. Há nela um total abandono à escuta da Palavra e da vontade do Senhor, e é escuta que faz servos, diz toda a Escritura. Em Maria temos o ícone autêntico da Igreja e do crente submetido ao primado da Palavra de Deus e à ação do Espírito. Não é por acaso que o nascimento de Jesus acontece graças à ação do Espírito que desce sobre Maria e que o nascimento da Igreja ocorra graças ao Espírito que desce sobre os discípulos e sobre a própria Maria reunidos em oração (cf. Atos dos Apóstolos 1, 8; 2, 1-4). E não nos esqueçamos de que a geração de Jesus por parte de Maria é antes de tudo um acontecimento espiritual, como Lucas nos recorda num excerto só atestado no seu Evangelho: «Enquanto Jesus falava, um mulher da multidão levantou a voz e disse-lhe: “Feliz o ventre que te transportou e o seio que te amamentou!”. Mas Ele disse: “Felizes antes aqueles que escutam a Palavra de Deus e a guardam!”» (Lucas 11, 27-28). Palavras que ressoam o pleno louvor de Maria, que é «feliz porque acreditou no cumprimento da promessa do Senhor» (cf. Lucas 1, 45).

O gerar Cristo é uma operação antes de tudo espiritual, que acontece graças à fé, a qual é exposição radical de si à presença de Deus e à força do seu Espírito. A esta geração de Cristo em si é chamado cada cristão: trata-se de acolher a Palavra com fé e obediência, de a deixar fecundar em nós pelo Espírito Santo, de a deixar crescer noite e dia, mesmo que não saibamos como. Assim será gerado o Cristo: «Cristo em vós, esperança da glória» (Colossenses 1, 27).

O mistério de Maria torna-se então o mistério do cristão, o qual, contemplando o ícone da anunciação, vê o mistério da sua própria vocação. E aprende que tal empresa não pode ser levada por diante contando com as próprias forças pessoais, mas só confiando-se e apoiando-se na graça do Senhor.



 

Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: SNPC
Publicado em 20.12.2017

 

 
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